
Humita doce, um cremoso de milho com chocolate
Ainda nem escrevi uma linha e já vou mendigar ao leitor que recue umas horas no tempo. Eu ajudo. O que era suposto começar a relatar passou-se num restaurante Eleven apinhado, a partir das oito da noite desta quinta-feira, 25. O que lhe vou contar agora aconteceu logo pela manhã, no charmoso Vila Galé de Paço de Arcos, durante a entrevista que fiz ao chefe chileno Rodolfo Guzman. Sabia que seria ele a pôr o ponto final no jantar que celebra Lisboa como capital Ibero-Americana da Cultura, com uma sobremesa que leva dois dias a preparar.
Explicou-me então que, por um lado, iria apresentar o ice brulée, uma fina capa de gelo a esconder o creme feito com plantas silvestres colhidas no deserto de Atacama, entre os três e os cinco mil metros de altura. A segunda parte da sobremesa seria uma sanduíche gelada, de Rosas do Ano, flores que assim se chamam porque só aparecem no deserto quando chove. Depois da sua enfática descrição, fiquei presa à curiosidade de provar uma sobremesa deste calibre. Pouco doce, avisou logo. “O creme é como um vermute, adstringente, e a sandes, um perfume.”
E é por isso que, agora que finalmente vou regressar para o jantar, irei inverter a ordem da refeição. Para escrever, cheia de pena, que o Ice Brulee + Rose of the Year Sandwich foi difícil de tragar. O chefe veio à mesa trazer-nos a sobremesa e fazer um resumo do que me dissera nessa manhã. Mas de todos os jornalistas sentados naquela mesa (e éramos muitos), só a chilena foi capaz de acabar de comer a criação de Rodolfo Guzmán.
Ainda por cima, acabara de provar uma delícia chamada Humita doce, assinada pelo chefe peruano Jorge Muñoz, que está à frente do Pakta, em Barcelona, com uma estrela Michelin. Esta sobremesa vem em grandes pratos, em cima de milho seco de diferentes variedades, muitas delas desconhecidas dos portugueses. Mas isso é apenas para olhar e tocar, o resto, o que se come, faz despertar todos os recetores cerebrais que adoram o sabor doce, embora, segundo nos garantiram, a culpa nem seja do açúcar. A culpa, sei-o eu, porque comi dois exemplares, está no cremoso de milho com canela e chocolate que se aconchega lindamente na colher feita de barbas de milho – uma sobremesa que existe há séculos e que pode encontrar-se em toda a zona andina.
A pré-sobremesa tinha nome inspirador e ainda por cima saíra das mãos da única mulher deste grupo de oito chefes que nos serviu ontem à noite. Só por isso estava mesmo entusiasmada, embora o apetite já não fosse muito, depois de cinco pratos irrepreensíveis. E quando os camaradas da imprensa sul americana mostraram o fruto com que é feito – o mamey – a vontade disparou. Só que, esquisitinha me confesso, também não não consegui passar da primeira colherada. Soube-me, mesmo, a amêndoa amarga. Ainda bem que houve quem ficasse, discretamente, com a minha dose, evitando assim um incidente diplomático com o colega do México que estava mesmo à minha frente.
Cataplana de Lavagante by Joachim Koerper
Carne e peixe e as misturas improváveis
Ao segundo prato de carne pensava que não aguentaria, que levava demasiada proteína no bucho. Mal sabia que ia delirar com a costela de porco, goiabada picante e tutu de lentilha, do brasileiro Felipe Bronze. Aprendi, através da palavra de jornalista da Globo, que aquele é o chefe “mais vibrante” do Rio de Janeiro. E tudo o que faz, garantem, tem História por trás. Como este tutu, prato típico de Minas Gerais, trazido pelos escravos que desfaziam os feijões em puré, junto com mandioca. Neste caso, o que acompanha a costela faz-se com lentilha negra. E é uma maravilha, mesmo que o chefe carioca parecesse receoso por estar a servir mais de cem pessoas, quando habitualmente só recebe 35 no seu restaurante Oro.
Enquanto uns clamam que o prato é “uma lição de Brasil”, a escanção Teresa Gomes mete a colherada, no momento em que apresenta o Esporão Reserva 2014, que acompanhou este prato e o Rabo de Boi, de José Avillez, dizendo: “E eu tenho o Alentejo na mão.” Os vinhos que casaram com a ementa foram todos da Herdade do Esporão, assim como o belíssimo azeite em que molhei o pão – sem necessidade nenhuma, claro!
O tal Rabo de Boi vinha com pedacinhos suaves de beterraba, tendões de vitela que faziam lembrar foie gras e um bocadinho de enguia fumada. Porque agora, ao que parece, nada se faz sem se misturar o dantes “inmisturável” – e até tive de inventar uma palavra para mostrar como às vezes não percebo alguns destes adereços surf & turf.
Sei que o que vou escrever na próxima frase vai ser entendido como um sacrilégio, mas seria desonesto se não manifestasse o que senti quando provei a caldeirada de lavagante do chefe anfitrião. Claro que o bicho estava mais do que no ponto, que a sua carne tinha uma consistência difícil de encontrar, mas as favas, minha gente, as favas e o seu puré estavam divinais. E a tira branca, que todos deduzimos ser nabo (não cheguei a confirmar com Joachim Koerper), quase não acrescentava sabor, mas dava consistência ao prato, que vinha servido em mini cataplanas, sem tampa.
Antes, a caldeirada nacional de Ricardo Costa, o duplamente estrelado chefe do The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, era de peixe-galo, tinha ovas salgadas crocantes e o aromático caldo de citrinos finalizava-se à colher.
Ficou para o final deste texto a entrada fria, confecionada por Leonel Pereira, que no algarvio São Gabriel faz maravilhas com ervas e plantas da região. Lê-se que são lulas cozinhadas a frio com citrinos, mas sei que é muito mais do que isso e que há vários momentos no mesmo prato – o caviar feito com tapioca, a lula seca ao sol durante um ano e que fica dura e salgada e ainda as flores e as ervas como a salicórnia. Uma perfeita harmonia, que abriu com chave de ouro um jantar que duraria quase quatro horas e que fecharia com um amargo de boca e flores coladas nos dentes.
Esta sexta-feira, 26, às 20 horas, repete-se, à mesa do Eleven, este jantar ibero-americano, que inclui harmonização com vinhos da Herdade do Esporão. Por €130, será possível provar os pratos preprados pelos chefes de cozinha Elena Reygadas, do Restaurante Rosetta (México), Felipe Bronze, do Restaurante ORO, no Brasil, Rodolfo Guzman, do Restaurante Boragó, no Chile, o peruano Jorge Muñoz, do Restaurante Pakta, de Albert Adriá (Barcelona), e ainda dos chefes portugueses estrelados José Avillez (Belcanto), Ricardo Costa (The Yeatman), Leonel Pereira (São Gabriel) e Joachim Koerper (Eleven e William).
Eleven > Jardim Amália Rodrigues, Lisboa > T. 21 386 2211 > seg-sáb 12h30-15h, 19h30-23h