Andámos a esmiuçar o que se passava na cozinha do madeirense Belmond Reid’s Palace – um charmoso clássico de cinco estrelas a caminho dos 125 anos – no dia do jantar que encerrou o Festival do Atlântico, com espetáculos de fogo-de-artifício na baía do Funchal, todos os sábados de junho. Quase tudo em fase de empratamento e muita gente com a mão nos originais petit fours, alguns a sair do forno: trufas de cereja, de abacaxi e coco, bombons de tamarilho (também conhecido por tomate arbóreo, uma das muitas variedades de maracujá existentes na ilha), telhas de amêndoa, gomas de framboesa e marshmallows de bolo de mel. Numa das estações de trabalho, o holandês Michel van der Kroft finaliza a terrina de foie gras com beterrabas, sim no plural, porque havemos de aprender que além da mais comum, de cor arroxeada, existe a bebé, a branca e a amarela. Esta especialidade é servida há 15 anos no restaurante Nonnetje, no centro histórico de Harderwijk, na Holanda, onde já ganhou duas estrelas Michelin, em 2008 e 2014. Na véspera de embarcar para a Madeira, só às quatro da manhã, Michel e a mulher, natural da Serra da Estrela, embalaram as flores comestíveis (dianthus, kailan, campânula isophila e capuchinhas) que haviam de decorar o prato. “Conheço melhor Lisboa do que Amesterdão”, assume, orgulhoso, Michel van der Kroft. Casado, há 27 anos, com Maria do Céu, diz num português quase perfeito: “Sou o único chefe holandês que trabalha produtos portugueses”. E para o comprovar ali estão uns raviolis recheados com queijo da serra, um dos pratos mais pedidos no restaurante onde trabalha.
No comando da equipa de 36 pessoas, o chefe Luís Pestana e o pasteleiro Pedro Campas foram os anfitriões de quatro chefes premiados com estrelas Michelin. A iniciativa Seis Chefs, Seis Sabores, que encerrou o festival de fogo-de-artifício, apresentou muito mais do que isso e promete voltar a realizar-se no próximo ano. A sala privada do restaurante William, reaberto há um ano com a supervisão do chefe Joachim Koerper, encheu-se para um almoço degustação daquilo que à noite seria servido a 60 comensais. Nas flutes, champanhe Pommery Brut para Luís Pestana apresentar o “primeiro acepipe” (há quanto tempo não ouvia esta palavra!), uma trouxa de pão crocante com gema de ovo biológico, ali da freguesia vizinha do Caniço, com um puré de batata roxa com trufa negra de Norcia (da região italiana de Umbria), de aroma menos intenso do que a branca de Alba, e chouriço.
Segue-se a especialidade holandesa de Michel van der Kroft. A “estrela do prato” é a terrina feita com diversos fígados de ganso o que lhe confere o padrão marmoreado, mas ninguém fica indiferente ao vinagre balsâmico com 25 anos, pois sem a sua acidez o prato não resulta. A combinação das várias texturas, como o aveludado da terrina e o crocante da beterraba, ou do mar (enguia) com a terra (plantas), foi o que tornou este prato num dos mais interessantes da tarde.
Ricardo Costa, do hotel Yeatman, no Porto, com uma estrela Michelin, foi o senhor que se seguiu e serviu o primeiro prato quente do menu. Mudam-se os copos para um Sauvignon Blanc (Quinta do Ortigão 2015) para receber o salmonete cozinhado seis minutos a 52 graus, com outra terrina, esta feita com um cozido, mais um talharim de choco, algas códium e uma espécie de dashi (caldo japonês) confecionado com molho de soja e molho de sésamo. No fim, quase em uníssono reclamava-se por mais caldo e ele apareceu acompanhado por uma colher.
Além de convidado, Joachim Koerper é também o consultor do William, tarefa que desde há um ano acumula com o Eleven, em Lisboa, onde já conquistou uma estrela Michelin, mais o Eleven Rio, no Rio de Janeiro, onde vai, precisamente, passar os próximos dois meses, por causa dos Jogos Olímpicos, e a consultoria na Herdade da Malhadinha Nova, no Alentejo. A sua escolha recaiu no lavagante azul da nossa costa, ingrediente de eleição do chefe alemão, assado e descascado, com um crocante e maioneses. No prato, o cubo de tomate com cerefólio, a assinatura de sempre do chefe. Nos copos, muda-se de um Chardonnay, Quinta de Cidrô 2015, para o único tinto do repasto, Pacheca Grande Reserva 2011, Touriga Nacional.
O mais rústico e teatral prato chega pela mão de João Rodrigues, do Feitoria, em Lisboa, também com uma estrela Michelin. O chefe de cozinha pegou na típica matança do porco de Santa Cruz da Trapa (S. Pedro do Sul), de onde é natural o pai, para fazer “uma reflexão sobre a mais recente tendência de a melhor alimentação ser à base de vegetais, cada vez menos acompanhados de proteína”. Mas também alerta: “Tem de se saber a origem dos legumes, porque um mau legume pode ser tão nefasto como comer muita carne”. O coração de alface grelhado representa o coração do animal enquanto o molho de morcela é alusivo ao sangue do animal. Entramos na reta final com um madeira meio doce (Boal 10 anos). Uma pancada seca abre o ovo de chocolate recheado com maracujá, da autoria do pasteleiro Pedro Campas. E tal como os madeirenses dizem quando gostam muito de alguma coisa, estimei!