É impressionante a calma com que tudo decorreu nos bastidores. Terá sido dos filmes que vimos ou da projeção que fizemos da nossa própria cozinha à hora do jantar, mas na nossa cabeça havia uma imagem de panelas amontoadas, de berros de uma ponta para a outra da divisão e de um frenesim instalado que não tem a mínima correspondência com este Rota das Estrelas.
Esta sexta, 6, eram cinco chefes (quatro distinguidos com uma Estrela Michelin, um a caminho da distinção, asseguram fontes bem informadas) a partilhar os fogões do restaurante do hotel The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, que, pela quarta vez, realiza este evento. “Um encontro de amigos”, repetiram todos. A camaradagem ajudava a explicar, em parte, a paz reinante. Mas, acima de tudo, havia uma máquina muito bem oleada que não permitia falhas. E João Rodrigues, Joachim Koerper, Ljubomir Stanisic e Pedro Lemos, os chefes convidados por Ricardo Costa nesta primeira noite (outros se seguirão no sábado, 7, e no domingo, 8), sabiam disso e nem por um momento sentiram a confiança a vacilar. “É tudo tão bem organizado que não existe azáfama”, confirma Ljubomir Stanisic, o chefe jugoslavo, dono do restaurante 100 Maneiras, em Lisboa, há 19 anos radicado em Portugal. “Este é um dos eventos gastronómicos mais fortes que existe no nosso País, onde as pessoas têm a oportunidade rara de conhecer, no mesmo jantar, vários tipos de sabores”, continua.
É preciso dizer que falamos de uma estrutura gigantesca, com a cozinha principal dividida em cubículos de vidro, cada um destinado à preparação de um tipo de matéria-prima. No dedicado aos vegetais, encontramos Pedro Lemos, orgulhoso, à volta das acelgas e do cebolete que trouxe da sua horta, instalada no terraço do restaurante com o seu nome, na Foz do Porto. A maior parte das encomendas dos produtos foram centralizadas no The Yeatman – “até porque os nossos fornecedores são quase os mesmos”, explica Ricardo Costa – mas cada chefe acabou por trazer qualquer coisa consigo e por adiantar algum trabalho na origem.
O anfitrião começou por pedir-lhes, umas semanas antes, duas ou três sugestões e, no final, decidiu qual seria a escolhida para figurar no menu, baseado nesta estação do ano e em proteínas tipicamente portuguesas. A fazer as honras da casa, esteve uma francesinha com barriga de atum, com um molho picante bem acentuado. O segundo prato foi um fresquíssimo carabineiro (capturado nas águas do Algarve) com gotas de espinafre e couve-flor, criado por Ljubomir Stanisic, seguido de uma caldeirada de raia, crustáceos e bivalves, mais uma vez da autoria de Ricardo Costa. Para concluir os sabores do mar, Joachim Koerper (Eleven) apresentou um robalo com boletos e béarnaise com coral. As carnes abriram em beleza, com a vaca maturada durante 30 dias sugerida por João Rodrigues (Feitoria), acompanhada de amido de batata, enguia fumada e cogumelos selvagens. A terminar os pratos principais, esteve o pombo com cogumelos, endívias e trufas de Pedro Lemos. “As carnes de caça não são consensuais, mas nestes eventos as pessoas estão mais predispostas a experimentar coisas diferentes”, diz o chefe portuense.
Durante a tarde, Beatriz Machado, a diretora de vinhos do hotel, já tinha conferido com os chefes, um a um, as harmonizações feitas, pedindo-lhes para provar os vinhos exclusivos que retirou da garrafeira do The Yeatman, de várias regiões de Portugal (a exceção é um Philipponnat Blanc de Noirs 2008, o champanhe que abre a refeição). As suas sugestões são aceites por unanimidade. “Com os boletos vai ficar muito bem”, diz Joachim Koerper, referindo-se ao Quinta Mendes Pereira (Reserva 2012) que casará com o seu robalo. “Há 15 anos, quem diria que a região do Dão iria estar tão forte?”, questiona o chefe alemão, com uma vasta experiência em território português. O mestre de 63 anos assiste com prazer ao trabalho desta nova geração de cozinheiros, todos na casa dos 30. “O Ricardo, por exemplo, foi meu discípulo em Espanha, é um orgulho ver o caminho que seguiu.”
Pouco mais de uma hora antes do jantar, um exemplar dos pratos é preparado pelo respetivo criador e alinhado ao balcão com os restantes, para que sejam apresentados pelos mesmos à equipa responsável pelo serviço de mesa. Ouvem-se perguntas sobre os ingredientes, a confeção e a inspiração subjacente. “Temos uma pequena participação no jantar, mas é importante tirar todas as dúvidas com os chefes, porque somos nós que damos a cara perante os comensais”, diz um dos elementos da equipa.
Quando chega o momento decisivo, tudo decorre sem sobressaltos, cumprindo os timings estabelecidos. Na “mesa de montagem”, o empratamento faz-se a várias mãos, independentemente da autoria do prato. O rosto mais nervoso é o de Edgar Rocha, um dos subchefes do The Yeatman, responsável pela coordenação com os cinco chefes. “É uma noite muito atarefada, mas é bom fugir da rotina”, conta. “Tenho de me adaptar aos diferentes perfis, são muitas cabeças para gerir. Mas somos todos amigos.” Entre os chefes, o convívio faz-se entre copos de vinho e champanhe e ainda há tempo para se tirarem fotos aos pratos com os telemóveis. “No resto do ano o trabalho é tanto que poucas vezes nos encontramos, temos de aproveitar estes momentos”, defende Koerper. Ao chegar às sobremesas, a cargo da casa (uma recriação de ovos-moles de Aveiro, a terra natal de Ricardo Costa, e, para terminar, um poroso de amendoim, ganache de chocolate com flor de sal e gelado de caramelo), a descontração é quase total.
Os laços entre os vários chefes saem desta experiência mais fortes. Afirma Pedro Lemos: “A paixão pela cozinha é o que nos aproxima. Isto é o nosso estilo de vida, abdicamos de muita coisa para estar aqui.” João Rodrigues, o rosto do Feitoria, (o “puto malandro que é a melhor companhia para beber e comer”, na descrição de Ljubomir), acrescenta: “Esta é uma base de lançamento para aquilo que pode ser uma boa e sólida gastronomia portuguesa. Será mais fácil alcançarmos uma projeção internacional se trabalharmos em conjunto.”