Isaac Blum, comerciante, nascido em 1898, em Przeworsk, na Polónia, casado, passou pelo Porto em 1940-41 e foi acolhido temporariamente na Cúria, antes de partir para os Estados Unidos da América. O mesmo destino tiveram o belga Richard Berschausbi, nascido em Bruxelas (1924), após ter chegado com o filho, Paul. Ou a família Blumberg (Raphael, Marta e o filho, Jacques), albergados temporariamente na Figueira da Foz, que, tal como a Cúria, era uma das chamadas zonas de residência fixa para os judeus antes de saírem da Europa. Estes são apenas alguns dos documentos (dos mais de 400) mostrados pela primeira vez ao público no Museu do Holocausto no Porto, pronto desde janeiro e que abriu na passada segunda-feira, 5 de abril, no número 790 da rua do Campo Alegre, num discreto rés do chão, onde à entrada está apenas escrita a palavra “recordar” em hebraico. É o primeiro museu da Península Ibérica sobre o genocídio que vitimou cerca de seis milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, e começou a ser planeado em 2019 pela Comunidade Judaica do Porto (CIP/CJP), por altura da entrada de Portugal como Estado-membro da Aliança Internacional da Memória do Holocausto.
“Na realidade, o museu não tem uma coleção propriamente dita. Aquilo que exibe de maior relevância são as fichas individuais de refugiados que passaram pelo Porto durante a Segunda Guerra Mundial. Faziam parte do nosso arquivo e estavam guardadas na sinagoga”, explica Hugo Vaz, curador do museu e diretor de Cultura e Investigação Histórica da CIP/CJP, da qual fazem parte 500 pessoas de 30 nacionalidades. “Portugal, sendo um país neutro, permitiu a entrada de mais de 50 mil judeus refugiados que usaram o nosso país como plataforma de saída da Europa. A nossa missão é dar a conhecer essa passagem pelo Porto.” E continua: “Temos pessoas das mais diversas profissões, desde juízes a advogados, de académicos a simples carpinteiros, de vários países, que recebiam primeiro o apoio do Amparo dos Desterrados [departamento criado pela Comunidade Judaica]. À medida que o número de refugiados vai crescendo, passam a ser ajudados pela Comassis – Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados”. Com as vidas desfeitas, ficavam alojados na Sinagoga do Porto (a poucos metros do museu), em casas de membros da comunidade, em pensões (como a Aliados) ou nas tais zonas de residência fixa, situadas em locais balneares e termais, enquanto aguardavam pelos vistos para seguirem viagem.
As cópias destas fichas históricas fazem também parte do arquivo do Museu do Holocausto de Washington. A CIP/CJP tem mais documentos e espera agora que investigadores possam aprofundar o tema. Neste museu, financiado por uma família sefardita portuguesa do Sudeste Asiático, que foi vítima de um campo de concentração japonês durante a Segunda Guerra, está também escrito o passado de membros da Comunidade Judaica do Porto, como o de Luísa Kinkelstein, com descendência polaca: “A história da minha família terminou, para uns, nos campos de extermínio, e outros foram vítimas de pelotões de fuzilamento depois de terem sido obrigados a abrir uma vala comum.”
Um museu a três momentos
O jardim vertical situado logo à entrada é “o primeiro momento do museu, aquele que representa a vida a prosperar antes da Segunda Guerra Mundial”. “Os judeus tinham a sua produção científica, literária, os seus negócios e famílias”, lembra Hugo Vaz, durante uma visita guiada. Mas é quando entramos no segundo momento que tudo muda. De um lado, a chanukiá – o candelabro de nove braços, símbolo do judaísmo – presa por arame farpado; do outro, a réplica da frase Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta) e uma fotografia da entrada de Auschwitz-Birkenau, símbolo maior dos campos de concentração e de extermínio. “O museu segue uma ordem cronológica, à exceção desta entrada”, explica o curador. “No fundo, para obrigar as pessoas a perceberem qual foi o destino final e a questionarem como tudo começou.”
Num ambiente cada vez mais escuro, atravessamos a sala que replica as camaratas de Auschwitz. Ao fundo, surgem três grandes fotografias tiradas durante a libertação dos campos – numa delas, aponta Hugo Vaz, está Elie Wiesel, o escritor judeu Nobel da Paz. O que se segue são imagens arrepiantes, copiadas do álbum Auschwitz, o único com fotos dos campos ativos tiradas por um oficial nazi, cujo original está no arquivo do Museu Yad Vashem, em Jerusalém. De lá, assim como dos museus de Washington, Moscovo, Paris (Memorial Shoah) e Hong Kong, vieram parte das fotografias e vídeos que veremos mais adiante, além de imagens doadas pela Fundação Shoah, criada por Steven Spielberg. É com os números impressionantes da chacina nos seis campos de extermínio na Polónia, com Auschwitz-Birkenau à cabeça, que se entra na sala Memorial, onde as paredes estão cobertas por milhares de nomes aleatórios de vítimas do Holocausto, convidando “ao silêncio, à reflexão, à memória”, sublinha o curador.
Continuando a percorrer “este caminho sinuoso”, passamos por dois rolos da Torá (o livro sagrado do judaísmo), deixados à Sinagoga por familiares de refugiados. Num corredor escuro, numa longa vitrina à direita, estão expostas, por letra alfabética, as tais 400 fichas de refugiados que passaram pelo Porto, em 1940/41, vindos da Bélgica, França e Luxemburgo. À esquerda, mais imagens, textos e dados que retratam a vida judaica antes do Holocausto – um mapa mostra o número de judeus na Europa em 1933 (só a Polónia tinha 3,3 milhões), para, no fim da visita, os comparar com os de 1945 (restavam 45 mil na Polónia) –, o domínio nazi, a Noite dos Cristais que destruiu milhares de sinagogas e lojas na Alemanha e Áustria, os guetos na Polónia e União Soviética, a Solução Final, as Marchas da Morte e Libertação. Na homenagem aos Justos entre as Nações, destaca-se o cônsul português Aristides de Sousa Mendes, mas também o padre Joaquim Carreira, Sampaio Garrido e Joseph Brito-Mendes. “Estamos a honrar quem desapareceu, mas também os que salvaram”, diz Hugo Vaz. A luz chega no terceiro momento do museu, com a vida no pós-guerra e a fundação do Estado de Israel, em 1948. Mas, sobretudo, com a chanukiá, que havíamos visto no início, agora livre do arame farpado.
Museu do Holocauto do Porto > R. do Campo Alegre, 790, Porto > seg-sex 14h30-17h30 > grátis até fim de junho > entrada limitada a 25 pessoas em simultâneo > Informações: tourism@comunidade-israelita-porto.org
Polo Museológico Fronteira da Paz, Memorial aos Refugiados e ao cônsul Aristides de Sousa Mendes
Em Vilar Formoso, recordam-se as fugas de judeus ao terror nazi através de Portugal
Olhando do exterior para o antigo armazém da estação ferroviária de Vilar Formoso, não se adivinha a dimensão, em vários sentidos, do que lá vai dentro. O polo museológico Fronteira da Paz, Memorial aos Refugiados e ao cônsul Aristides de Sousa Mendes, inaugurado em 2017 (o projeto foi iniciado, pela Câmara Municipal de Almeida, em 2012), integra-se na Rede das Judiarias de Portugal – Rotas de Sefarad. Ali, recordam-se os dias loucos vividos em Vilar Formoso, durante a Segunda Guerra Mundial, quando muitos refugiados tentavam escapar do terror nazi através de Portugal. Mas a Fronteira da Paz vai muito além dessas memórias locais (com filas de carros europeus nunca vistos por ali e a população a servir sopa e pão fresco, pelas janelas dos comboios, a quem desesperava na tentativa de fuga): a contextualização é abundante e não faltam testemunhos, em vídeo, de famílias judaicas que nunca esqueceram a sua passagem por Portugal. Anunciado como um memorial ao cônsul Aristides de Sousa Mendes, este museu é bem mais do que isso. P.D.A. Lg. da Estação, Vilar Formoso > T. 271 149 459 > ter-sex 9h-12h30, 14h-17h30, sáb-dom, feriados 10h-12h30, 14h-17h30 > €3