Imagine-se numa mesma peça Camilo Castelo Branco e David Bruno, o projeto a solo do frontman do Conjunto Corona que tem letras como “a luz das velas não é a mesma sem ti” ou “baby, bebe e dorme/ vou-te levar a Miramar, não a Benidorm.” Camilo Castelo Branco foi igualmente pródigo a filigranar as hipocrisias da estrutura social e respetivas artes de bem casar a norte, em textos como Entre a Flauta e a Viola e Patologia do Casamento, em que retratou de forma excelsa marialvas da Póvoa de Varzim à Póvoa do Lanhoso.
Canja de Galinha (com Miúdos), com dramaturgia e encenação de Luís Miguel Cintra a partir dessas duas peças de Camilo, passa-se numa estalagem em Barcelos e junta dois tempos: um século XIX de candelabros e palavras a acentuarem consoantes que já não existem (como o “c” de victimas) e os dias de hoje. A jovem a quem o pai quer arranjar um bom partido para casar está apaixonada por um estudante teso (e concierge na estalagem), tem o cabelo rapado e tatuagens no corpo franzino e fuma. As canções de David Bruno não fazem parte da banda sonora, mas bem poderiam fazer.
Este regresso de Luís Miguel Cintra ao teatro pretende refletir sobre a condição da mulher, a sua efetiva liberdade, e põe a nu a eterna dicotomia entre os que convivem bem com a hipocrisia do mundo e os que passam a vida a tentar rebelar-se contra ela. “Estas duas peças de Camilo tocavam numa coisa que me irrita solenemente: a maneira superficial com que, politicamente, ainda são tratadas as questões que dizem respeito à mulher”, diz o encenador. “Achei engraçado fazer uma coisa como o Camilo fez, que é muito mais ambígua e verrinosa.” A contradição e o artifício estão sempre presentes: das portas que são apenas molduras ao palco que se estende para junto do público. O Diabo, esse, passa o tempo a rondar e a rir-se, de longa cauda na mão.
Canja de Galinha (com Miúdos) > Museu da Marioneta > R. da Esperança, 146, Lisboa > T. 21 394 2810 > até 29 dez, ter-qui 19h, sex-sáb 21h30, dom 17h30 > €5-€7,50