Tudo começou com uma história de amor. Um conto de fadas iluminado por Estrelas Michelin. Era uma vez um cozinheiro que se apaixonou por uma menina madeirense num hotel em França e decidiu segui-la até à Madeira. Vinte anos depois, o cozinheiro é o chefe do único restaurante com uma Estrela do Guia Michelin no arquipélago e editou um livro em homenagem à ilha que o adoptou.
De França, sente sobretudo saudades de esquiar. É presidente-discípulo da escola Escoffier porque quer proteger a técnica francesa, as bases da cozinha, mas também para imprimir alguma modernidade e juventude à instituição centenária gaulesa. Os sabores da terra-natal guarda-os na memória e transporta-os para os pratos criados para Il Gallo D’Oro, o restaurante do hotel The Cliff Bay, no Funchal. No carabineiro com molho bisque de mariscos ou na cavala com sorbet de pepino e iogurte. Tem um olhar especial sobre a cozinha francesa, ainda influenciado pela avó Simone, que o levava quase todos os dias às compras ao mercado e que, dependendo dos produtos disponíveis, compunha os almoços e os jantares à sua frente.
Inconscientemente, ele faz o mesmo. Num passeio pelo Mercado dos Lavradores, seu “jardim de inspiração”, criou alguns pratos de cor e salteado, só pelo prazer de conjeturar combinações. E dessa forma mostrava a essência da sua cozinha: “A minha comida é natureza, eu aproveito a natureza, só. É uma cozinha que mistura os produtos que estão à minha volta com a minha experiência pessoal e as influências de outros chefes de todo o mundo”, resume no seu português com sotaque. Ele chama-se Benoît Sinthon, nasceu em 1972 junto a Marselha e hoje vive numa moradia ao pé do Estádio dos Barreiros, com a tal “menina” madeirense, a Lara, e as duas filhas – Clara, de 15 anos, e Sofia, de 11. Tem churrasco, jardim, uma bananeira, uma tangerineira e algumas ervas aromáticas. É um homem simples. Que se apaixonou pela filha da ilha, pela ilha e pelos frutos dela.
Café Cica (Mercado dos Lavradores)
É a primeira paragem antes de “atestar”. Uma bica bem portuguesa neste café com esplanada junto à entrada principal do Mercado dos Lavradores. Existe como Cica Bar há 27 anos e é célebre pela sua carne de vinha d’alhos no pão. Um petisco típico da ilha, especialmente na altura do Natal, mas aqui se faz todos os dias. Benoît fica-se pelo café.
Banca de peixe dos Irmãos Gonçalves (Mercado dos Lavradores)
Os irmãos Gonçalves são os grandes aliados do cozinheiro francês neste mercado. “É aqui que vimos buscar o peixe para o restaurante”, diz-nos, mesmo antes de chegarmos à fala com um dos irmãos, o Pedro. Pedro nasceu em 1951 e em 1961 já estava no mercado a trabalhar com os pais. Naquela manhã, a banca exibia pargo e cherne da Madeira, dourada, robalo, bodião dos Açores, garoupa, atum. “Adoro vir aqui quando eles acabam de receber lapas, búzios ou caramujo… Aquele cheiro da rocha vulcânica, do mar… Uau!”, exclama o chefe.
Banca das ervas de José Câmara (Mercado dos Lavradores)
“Descanso a cabeça quando vejo este stand”, desabafa Benoît quando acabamos de subir as escadas que ligam ao primeiro piso do mercado e chegamos perto da banca de ervas de José Câmara. José está aqui há 20 anos e a mãe esteve mais 30. São 50 anos a estudar plantas para efeitos medicinais e culinários, uma enciclopédia viva num cantinho discreto do mercado. Todas as plantas são da Madeira. E são mais de duzentas. Há nomes que nos escapam, os especiais, como a selvageira, que só se dá na Madeira, outros familiares, como orégãos, mas que aqui cheiram diferente, outros ainda com variações, como a hortelã de cabra. José usa as folgas e os feriados para ir para o campo colher as plantas. “Já sei onde elas estão, aprendi com a minha mãe”, explica. Benoît destaca o louro porque lhe lembra o cheiro da espetada típica madeirense feita em pau de louro, mas também porque é uma planta que usa muito no restaurante. O funcho elege não pela sua ligação ao nome da capital da ilha, mas porque lhe lembra o Ricard, o licor anisado made in em Marselha.
Banca de frutas da Noélia (Mercado dos Lavradores)
Doze variedades de maracujá (banana, limão, ananás, laranja, pêssego, morango, tropical, lima, normal), outras tantas de banana (prata, ouro, maçã gigante e maçã normal, vermelha), um ananás-banana com sabor a anona, kiwi, ananás e banana, anonas, um “fruto delicioso” a que também chamam consolo das viúvas pelo seu formato e textura, batata-doce, tomate inglês, granadilha, mangas da Fajã dos Padres, papaia… A banca de fruta da dona Noélia, no mercado há 33 anos, é quase tão profícua e colorida como a ilha da Madeira. Benoît é fã. “Infelizmente, não posso comprar aqui todos os dias para o restaurante, só quando preciso de alguma fruta exótica muito específica e não tenho muito tempo. É top em termos de qualidade, mas muito caro para um fornecimento diário.” O maracujá e a banana-prata (e o conjunto dos dois) são as suas frutas madeirenses preferidas. E este Mercado dos Lavradores o eleito no mundo para fruta exótica.
Mercearia CC (Mercado dos Lavradores)
É uma rotina invulgar. Acabar uma ronda de mercado com um sumo de cana-de-açúcar. Mas é a rotina do chefe do Il Gallo D’Oro. CC, iniciais de Cláudia e Catarina, fazem-no natural, com limão ou com aguardente há quase quatro anos. É uma das especialidades desta banca num canto escondido do primeiro andar. Outros: a poncha e os sumos naturais. “Deviam fazer derivados de cana, como bolachas”, sugere Benoît a dada altura da conversa. “Ou experimentem misturar gengibre, sumo de tangerina, soja e uma pinga de vinho da Madeira. Uma vez fiz um prato com esta combinação e ficou espetacular.”
Madeira Wine Blandy
Terrantez 1976. A visita à adega da Madeira Wine Company, no centro do Funchal, tinha este alvo bem marcado. “Quando bebo este vinho, lembro-me ?da tarte de nozes que comia na casa da minha avó paterna e de um vinho de nozes que bebia no centro de França, onde passava férias”, lembra o chefe originário de Marselha. “Mas também o associo ao queijo azul cremoso, como o gorgonzola e o stilton. É a ligação perfeita com este vinho, principalmente se mordermos um figo seco desidratado no final.” ?À quinta paragem, ?a meio da viagem ?pelo Funchal, não e?ra a primeira vez que ?o cozinheiro compunha espontaneamente ?um prato. ?O entusiasmo e o amor pela profissão falavam mais alto sempre. Uma garrafa deste Terrantez custa quase 200 euros e Benoît bebia o seu cálice com o cuidado de um bem precioso. Já diz o ditado madeirense: “As uvas Terrantez não as comas nem as dês, para vinho Deus as fez.” Av. Arriaga, 28, Funchal. T. 291 228 978. Seg-sex 10h-18h30, sáb 10h-13h
A Quintinha das Ervas Aromáticas
Três mil metros quadrados de ervas e ervas e mais ervas, a maior parte desconhecidas e com fim culinário. Esmeralda Meneses tem A Quintinha há 20 anos e já curou uma doença supostamente crónica com as suas plantas. Neste momento, só tem ervas aromáticas em vaso. Inúmeras variedades que produz para uso culinário, mas também por curiosidade, pelos cheiros, flores para testar se são comestíveis. “Tudo o que são flores comestíveis e ervas aromáticas, a Esmeralda arranca e dá-me para fazer testes”, conta Benoît, pegando numa caixa com a seleção desse dia. “São coisas muito exclusivas que só existem quando a natureza permite.” O chefe gosta muito de aneto, cerefólio, basílico roxo, flor de borragem. “Sabe a pepino e vai bem com ostra, citrinos e vieira”, acrescenta logo. R. Dr. Barreto 45, S. Martinho, Funchal. ?T. 96 503 9579
Restaurante O Clássico
“É a pessoa que sabe tratar melhor o peixe na Madeira”, diz Benoît, a respeito do chefe Manuel Diogo, do restaurante O Clássico. “Adoro a esplanada e o arroz de polvo. Só vou se estiver sol, para ficar no terraço. Tem uma vista espetacular para o mar!” Foi neste restaurante de cozinha tradicional que Benoît comemorou o seu 42.º aniversário. “É uma cozinha simples, mas só de produto fresco. É uma das poucas casas na Madeira em que pedes o bife de atum mal passado e eles entendem e de facto trazem-no mal passado.” A vista perde-se no mar, na Ponta do Caniço, nas Desertas. Em baixo ficam a Ponta da Cruz e as piscinas naturais da Ponta Gorda. Estr. Monumental, Hotel Duas Torres, Funchal. T. 291 774 111. Seg-dom 12h30-16h, 19h-23h
Promenade da praia Formosa
Ao chefe francês agrada-lhe praticar exercício físico. Caminha e corre, mas sobretudo no ginásio, onde vai três vezes por semana. Nesta Promenade, gosta de passear, de parar para admirar. “É uma parte selvagem dentro do próprio Funchal, com uma piscina e uma gruta. A imagem é de sonho.”
Sé do Funchal
A Sé (concluída em 1514) é um edifício bonito e com uma história rica – um dos poucos que sobreviveram intactos desde os tempos da colonização. São curiosos também os assentos da capela-mor que exibem santos, profetas e apóstolos e onde podem ver-se aspetos da vida da Madeira, como um querubim que transporta um cacho de bananas e outro que carrega um odre cheio de vinho. Mas a escolha desta catedral tem uma razão pessoal: “As minhas duas filhas nasceram na Clínica ao lado”. Além disso, fica na rua preferida do chefe, a Avenida Arriaga. “Na Primavera, as árvores em volta enchem-se de flores roxas e o sino da Sé fica enquadrado no meio delas, com as montanhas por trás.”_ R. do Aljube, Funchal. T. 291 228 155. Horários das missas: Seg-sáb 8h, 8h30, 11h15, 18h, dom 8h, 9h, 11h, 17h, 18h15