É capaz de se levantar às cinco da manhã para ir ver as “guelras” dos robalos acabados de chegar à lota de Angeiras, em Matosinhos. Neto de um vendedor de peixe, diz que o faz para não “perder” o que é. Depois de ter vencido uma Estrela Michelin, Pedro Lemos fala do seu restaurante, na Foz do Porto, agora renovado.
‘Está com sorte, tivemos uma desistência e podemos aceitar a reserva para o jantar de aniversário da sua esposa”, diz Pedro Lemos, ao telefone, no restaurante da Foz do Porto que leva o seu nome. Do outro lado, o cliente não lhe conhece a voz nem saberá, certamente, que fala com o único chefe com Estrela Michelin do Porto.
A casa fechou durante três semanas para férias do pessoal mas, entretanto, acabou “virada do avesso”, com uma remodelação integral. Dias antes da reabertura do restaurante, na última sexta, 13, o telemóvel de Pedro Lemos, 35 anos, não parava de tocar. Anda com dois telefones, um em cada bolso, pois é ele quem atende os pedidos de reserva, passando quase sempre incógnito aos clientes do outro lado da linha. Enquanto se ultimam as obras, no sentido de se tornar o restaurante “mais intimista”, “mais funcional” e com “mais identidade”, a nova Estrela do Porto anda “a mil à hora”. Calcula o local exato onde serão colocadas as colunas de som, arruma as cadeiras estofadas com tecido camel, verifica as paredes agora pintadas de cinza basalto e, ao mesmo tempo, fala com fornecedores ou combina a entrega de produtos para a cozinha. Trata-os a quase todos por tu. E não quer perder essa relação de cumplicidade. “Se crescer é perder isto, então não quero crescer. Quero manter esta relação com eles.” É por isso que, não raras vezes, a peixeira Isaura Jesus lhe liga às cinco da manhã a dizer que o peixe chegou à lota de Angeiras, em Matosinhos. Sempre que pode, “o menino Pedro” sai da cama às cinco ou seis da manhã para escolher o peixe na banca de Isaura.
Conforme conta, olha para “o brilho natural, os olhos, as guelras” do pescado, imaginando logo os sabores dos pratos que, com ele, pode preparar.
“É muito exigente, quer o peixe vivo. É um cliente muito ruim de servir”, brinca a peixeira, que até tem um retrato do cozinheiro na lota. “É um amigo e conhece bem o produto”, confirma.
Ao lado, indiferente às confissões, Pedro Lemos escolhe lavagantes, salmonetes e robalos que hão de ser cozinhados no restaurante. Só o atum é exceção, pois vem diretamente dos Açores. “Luto por vir à lota quando posso para não perder o que sou”, afirma aquele que nasceu muito próximo dos mercados e das canastras, por causa do contacto com o avô paterno, também ele vendedor de peixe.
Nada no frigorífico
Pedro Lemos é daquelas pessoas não tira férias, o telefone está sempre ligado, “dorme umas quatro horas”, conta Joana Espinheira, 35 anos, sua mulher, cúmplice e braço direito. A recente renovação do restaurante, a maior desde que abriu, há cinco anos, foi feita “à imagem dos dois”. Foi Joana, aliás, que desenhou a garrafeira, o aparador de copos da sala de cima e muitos dos elementos de decoração tiveram o seu dedo. “Já viu esta garrafeira?”, pergunta o chefe, entusiasmado com a nova sala do rés do chão, que agora tem uma mesa corrida de madeira sucupira para 12 pessoas e na qual Pedro pretende organizar “diferentes experiências”.
Joana, que nos últimos meses se tem dedicado ao Stash, a casa de sanduíches de autor que abriu na Baixa, já não estranha que o marido ande em piloto automático. E desde o final do secundário que ela o acompanha. Há meses, Joana deixou o laboratório de próteses dentárias onde trabalhava para se dedicar ao negócio. O casal, sem filhos, passa poucas horas em casa. “Lá, nem sequer cozinhamos”, confessa. “Não temos nada no frigorífico. Acho que a única coisa é cerveja, que o Pedro bebe para relaxar quando chega a casa [risos].” Pedro Lemos gosta de construir e desconstruir. Algo que lhe deve ter ficado dos três anos do curso de engenharia civil deixado a meio. Ele sonha e Joana dá-lhe as asas para voar. Se, antes da atribuição, no final do ano passado, da Estrela Michelin, a entrega à cozinha já era grande, desde esse dia que passou a dedicação passou a ser total. “São os desafios que me levam para lá dos meus próprios limites”, diz.
“Não quero perder o cliente habitual, mas pretendo ir mais além.” Daí que a renovação do restaurante, integrado numa casa do século XIX que outrora foi um pub, pretenda, sobretudo, “surpreender”. “Quero que o cliente tenha experiências diferentes no mesmo sítio, dizer-lhe que estamos cá para ficar. Não quero ficar agarrado à Estrela.”
A nova carta
A azáfama é grande na cozinha e a equipa (o núcleo duro são quatro pessoas) “sente a pressão”. “Todos eles são Pedro Lemos. Todos pensamos da mesma maneira”, ressalva o chefe, antes de se reunir com os empregados de sala para a reunião habitual sobre a nova carta. O “novo” restaurante não surpreenderá apenas pelo restauro do interior mas, e sobretudo, pelo menu, que mostrará o lado mais “inconformista ” e “evolutivo” de Pedro Lemos. À mesa, tanto pode chegar um foie gras de pato com pão de frutos secos, pera rocha e cardamomo, seguido de lavagante com abóbora, citrinos e funcho, como um robalo de anzol com espargos brancos, ameijoa e puré topinambur, um porco preto alentejano com favas e migas ou um lombo de vaca velha com trufa preta, cogumelos e espinafre. Na carta, será possível escolher entre o menu de quatro pratos (€70/pessoa), o de seis (€90/pessoa) ou um outro, mais sofisticado, que ainda está a ser ultimado. A seleção de vinhos, a cargo do escanção Pedro Ferreira, pode ser degustada e harmonizada com os pratos (€35 a €45).
A nova ementa é constituída por pratos com produtos da estação que querem provocar “uma explosão de sabores”. “Não peço à natureza, uso o que a natureza me dá”, justifica. Também de memórias se faz a cozinha de Pedro Lemos. Do tempo em que passava férias em Trás-os-Montes, na casa da avó materna, do lume, dos animais, das pessoas. “Um transmontano aperta-nos a mão e está tudo tratado.” Três meses após ter conseguido a Estrela Michelin, Pedro Lemos garante não se deslumbrar. “Vou é tentar tirar partido dela no sentido em que me permite arriscar mais um bocado”, diz. E continua: “As pessoas ligam a perguntar se ainda é possível reservar, partindo do pressuposto que a sala está sempre cheia.” E, muitas vezes, está, de facto.
No interior do restaurante, as diferenças são inúmeras. A pedra no chão das escadas deu lugar à madeira, retirou-se o papel de parede, as portadas das janelas estão mais evidenciadas, o aquecimento foi melhorado, as luzes, postas no sítio certo. Mas há uma “paisagem verde” que salta à vista. A horta, situada junto ao terraço, sonho antigo dePedro Lemos, está, finalmente, “com ar de horta”, como gosta de dizer. Os legumes e ervas semeados em novembro estão viçosos. Há ervilhas de quebrar, favas, alfaces, couve, rabanetes, brócolos, alho francês… “É claro que não são suficientes para alimentar o meu restaurante, mas só a ideia de ter ali alguns vegetais e de os arrancar da terra deixa-me feliz”, confessa.
Uma horta no terraço
O projeto da horta urbana foi da responsabilidade da empresa portuense Noocity, que aposta num sistema de sub-irrigação (o growbed) e que quer difundir-se às escolas, aos hotéis, a outros restaurantes. A ideia andava há muito na cabeça de Pedro, mas uma viagem a Nova Iorque, onde contactou com “mercados orgânicos brutais “, fê-lo não adiar mais o projeto. “Tínhamos de perceber o comportamento dos legumes em relação à humidade e proximidade com o mar. Mas a verdade é que eles superaram isso tudo. E ali, junto aquela parede, ainda vão nascer tomates e ervas aromáticas”.
O ano de 2015 será crucial. E Pedro Lemos sabe disso. A cidade do Porto não tinha uma Estrela Michelin há 30 anos e os holofotes vão estar virados para a sua cozinha. O miúdo que, aos 20 anos, ousou bater à porta de Miguel Castro e Silva no antigo Bull & Bear e passou pela equipa de Aimée Barroyer no Pestana Palace, em Lisboa, de onde guarda “as melhores recordações “, tornou-se num dos chefes mais promissores da cozinha portuguesa de hoje. Manuel Gonçalves da Silva, crítico gastronómica da VISÃO, define-o como “uma das figuras mais representativas da cozinha tradicional portuguesa da atualidade, porque vai às raízes e defende os nossos produtos tirando partido das novas técnicas.” Pedro Lemos, por seu lado, compara a ida “a um bom restaurante” a “ir ver um espetáculo”. E é esse mesmo sentimento que deseja proporcionar aos seus clientes. “Que usufruam, ao máximo, da comida.” Let the show begin!
Restaurante Pedro Lemos > R. do Padre Luís Cabral, 974, Porto > T. 22 011 5986 > ter-sáb 12h30-15h, 19h30-23h