Na passada quarta-feira, dia 29 de agosto, o arquiteto Siza Vieira foi distinguido, em Veneza, com o Leão de Ouro desta Bienal em reconhecimento da sua obra repartida pelo mundo. Nos tempos que correm é uma boa notícia para Portugal por momentaneamente nos retirar do estado depressivo que o País atravessa. Numa coluna de vinhos interrogar-se-á o leitor desprevenido a que propósito é para aqui chamado Siza Vieira. Já lá iremos.
Da sua obra, que conheço em Portugal, destaco três edifícios, que admiro particularmente: a Casa de Chá da Boa Nova (1963), sujeita atualmente ao vandalismo e ao abandono em Leça da Palmeira; a Igreja de Santa Maria (1996), em Marco de Canaveses, que o, então, padre Higino incentivou; e o Pavilhão de Portugal da Expo’98 (1998), condenado à degradação continuada em Lisboa. Poderia juntar o Museu de Serralves e a Faculdade de Arquitectura do Porto, como peças importantes do seu itinerário nacional, mas maquele trio constitui uma referência da arte de Siza Vieira, que me faculta vivências singulares: beber um copo de Porto na Casa de Chá a olhar o mar; refletir sobre a condição humana no interior da Igreja de Santa Maria; olhar o Tejo debaixo da pala deslumbrante do Pavilhão de Portugal sustentada pela engenharia de António Segadães Tavares. Que outro país consentiria na degradação de qualquer destas obras de arte? Não sei. Recordo-me da única vez que entrevistei Siza Vieira, então para a SIC, em abril de 2000, quando ele me declarou a certo passo (cito de memória): “As pessoas estão habituadas a levar o carro todos os anos à revisão e não falham.
Mas pensam que as casas é para toda a vida e não fazem a sua manutenção regular….” Ironia da história: são as entidades públicas, proprietárias da Casa de Chá e do Pavilhão da Expo, que não respeitam essas obrigações. Exposta a minha admiração por Siza Vieira, um reconhecido enófilo e apreciador da gastronomia tradicional portuguesa, vamos à sua obra relacionada com Baco.
Mais uma vez me reporto ao nosso país, onde surgem duas adegas com a sua assinatura. No Alentejo, a Adega Mayor; e, no Douro, a Adega da Quinta do Portal. A primeira, inaugurada em 2007 em Campo Maior, pertence ao empresário Rui Nabeiro; a segunda situa-se em Sabrosa, em Celeirós, no vale do rio Pinhão.
No caso alentejano, a adega responde a todo o ciclo de produção do vinho desde a recepção das uvas à sua vinificação, estágio e engarrafamento.
Na Quinta do Portal, Siza Vieira é autor do armazém de estágio e envelhecimento de vinhos Douro e Porto, que inseriu “num complexo anteriormente construído, uma unidade agrícola que domina e é dominada pela paisagem, vinha a perder de vista”, como o próprio esclarece no site oficial deste produtor duriense. No seguimento da sua reflexão acrescenta ainda: “É incontestável que no essencial e quando se mantém activa, a agricultura faz a paisagem. É essa a razão primeira da beleza do Douro”, sublinha.
Tal como a UNESCO ao consagrar há dez anos o Alto Douro Vinhateiro como paisagem cultural evolutiva viva Património da Humanidade.
A atividade pública de Siza Vieira permite-me admitir que a sua paixão pelo Douro vem de longe, e visivelmente desde 1997, quando traçou uma série de desenhos de paisagens e adegas da região duriense: rio Douro e Quinta de La Rosa junto ao Pinhão; albufeira da Barragem da Valeira; escarpas de São Salvador do Mundo; encostas do Douro; lagares da Quinta do Vale de Meão; os terraços da Quinta do Bom Retiro; panorama da Quinta do Bom Retiro e Vale do rio Torto; patamares da Quinta do Crasto; Quinta do Noval e vale do rio Pinhão; degustação na adega da Quinta da Pacheca.
São estes alguns dos temas desses desenhos reunidos em livro (Álvaro Siza – Esquissos do Douro), editado pela Figueirinhas, em 1999, com prefácio do historiador Gaspar Martins Pereira, coordenador do grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto. A arquitetura da enologia desenvolve-se particularmente na passagem dos séculos com vários protagonistas entre os quais Santiago Calatrava a assinar a espantosa adega Ysios (2001) em Rioja, no País Basco; Mário Botta, na Toscânia, em Itália, com a sua Adega de Petra (2003), e Frank Ghery com o seu hotel de vinho do Marques de Riscal (2006), em Espanha, para citar apenas três exemplos maiores da moderna eno-arquitetura.
Siza Vieira antes dos edifícios adegueiros desenhou um decanter e
os copos oficiais para vinho do Porto (2000); e mais tarde suportes em prata para garrafas de vinho do Porto (Bienal da Prata de Lamego, em 2001, onde também F. Ghery apresentou obra), para mais recentemente (2009) desenhar a garrafa do vinho do Porto comemorativa dos 100 anos de Manoel Oliveira. Importa aqui traçar a breve história deste vinho à venda na Garrafeira Tio Pepe (€850).
Trata-se de um vinho do Porto com 100 anos, de uma só pipa, que envelheceu na Quinta da Portelinha, propriedade do cineasta localizada em Santa Marta de Penaguião. Foi João Nicolau de Almeida, enólogo da Ramos Pinto, e amigo de ambos (do realizador e do arquiteto), quem cuidou e afinou esta raridade limitada a 300 garrafas.
Para concluir esta viagem pela obra báquica de Siza regressamos aos seus esquissos de onde foi retirado o rótulo de três vinhos Douro Doc. da Casa da Calçada e à Quinta do Portal.
Morgadio da Calçada Douro Reserva 2010 ****/***** – €22,50
Os vinhos da Casa da Calçada, de Provesende, resultam da parceria entre este produtor e Dirk Niepoort, responsável pela sua vinificação. O rótulo é um dos esquissos de Siza Vieira exactamente sobre a Adega desta propriedade. Este vinho branco corresponde-lhe pelo seu classicismo, fugindo ao estilo muito frutado, com aromas e sabores a frutos secos (pinhão) e um pós-boca prolongado e intenso de frescura.
Morgadio da Calçada Douro 2010 **** – €12,50
Este branco saiu mais frutado que o anterior, mas sem a exuberância dos vinhos ao estilo “novo mundo”. Muito agradável.
Morgadio da Calçada Douro Reserva 2009 ****/***** – €30
Um tinto muito harmonioso, taninoso, elegante, encorpado e vinoso a saber a Douro.
Portal White Porto Extra Dry **** – €7,50
Da Quinta do Portal propomos este Porto extra seco, com aromas a limão e sabores condizentes. Elaborado a partir das castas Gouveio, Malvasia Fina e Moscatel, surge com uma boa acidez que “esconde” os 20% vol. alcool. Beba-o fresco (9º ou 10ºC).
Volto à Casa da Boa Nova para recordar aqui um belíssimo poema de Eugénio de Andrade, intitulado Casa da Boa Nova de Álvaro Siza e publicado em Álvaro Siza/obra e método, de Jacinto Rodrigues (editora Civilização): “A musical ordem do espaço,/a manifesta verdade da pedra,/a concreta beleza/do chão subindo os últimos degraus,/a luminosa contenção da cal,/o muro compacto/ e certo/contra toda a ostentação,/ a refreada/e contínua e serena linha/abraçando o ritmo do ar,/a branca arquitectura/e nua/até aos ossos./Por onde entrava o mar.”
Ninguém descreveria melhor que Eugénio de Andrade aquela obra-prima de Siza Vieira.