A visita estava anunciada para noite de Lua cheia. Mas um universal imprevisto, chamado eclipse, reduziu significativamente a luminosidade do trajeto. Talvez o espetáculo intermitente dos pirilampos durante a parte inicial dezenas, centenas de luzes brancas a piscar à nossa volta, do chão à copa das árvores não tivesse a mesma magia com uma bola redonda e branca lá no alto…
O percurso inicia-se pouco depois das dez da noite, em frente ao Convento de Santa Cruz que, do tempo em que havia monges na Mata, conserva a entrada, o corredor claustro, a capela principal e uma cela dormitório. É aí, já com os olhos a habituarem-se à escuridão (pede-se para não se usarem lanternas nem telemóveis), que somos apresentados aos Carmelitas Descalços. Calcula-se que o último tenha deixado o Buçaco em 1855 (poucas décadas depois de Joaquim António de Aguiar, o Ministro da Justiça do Marquês de Pombal, ter extinguido as ordens religiosas).
Mas, apesar de não estarem presentes fisicamente, os monges baixos e magrinhos (eram vegetarianos) que chegaram aqui no século XVII em busca de recolhimento, acompanhar-nos-ão ao longo de toda a visita. Renderam-se ao Buçaco, chamaram-lhe o “Altar da Natureza”. E, como um verdadeiro espaço sagrado, não pararam de adorná-lo. Construíram uma réplica fiel da via sacra de Jerusalém, com os seis Passos da Prisão e os 14 da Paixão de Cristo; trouxeram espécies de todas as partes do mundo. A Mata revestiu-se de uma importância tal que uma bula do Papa Urbano VIII ameaçava até de excomunhão quem ousasse cortar alguma das suas árvores.
Liliana Duarte, uma das duas guias, é a nossa ponte para o passado. As suas palavras fazem-nos escorregar no tempo até 1628. Há quase quatro séculos, a natureza era já exuberante, frondosa, convidava a meditações e orações. Naquele ano, os monges, acabados de chegar, eram apenas seis, cada qual com um cobertor, uma canastra de sardinhas, dez moedas. Liliana usa o presente histórico para nos por a viajar no tempo: “É uma Ordem simples, que transmite pobreza. Dedicam–se ao cultivo da terra e a construir o que vemos hoje.” A guia que há um ano acordou a pensar que seria interessante realizar visitas noturnas pela Mata (estas que depois de um sucesso estrondoso no ano passado, vão na segunda edição), pede-nos agora para ouvir o som do vento a bater nas árvores… A música de fundo do Buçaco não se alterou com os séculos. “É uma ordem de silêncio, falam apenas de quinze em quinze dias, num período chamado recreio.” Soltam-se risos entre os cerca de 50 participantes no passeio, de todas as idades (que, ao contrário dos monges, falam e riem durante toda a caminhada).
Quase dois quilómetros e duas horas depois, já perto do final da noite, quando chegarmos às Portas de Coimbra (a principal entrada no Buçaco na época dos frades), saberemos que havia afinal o monge porteiro, o único que estava imune ao voto de silêncio. Nas portas, assim denominadas por estarem voltadas para a cidade de Coimbra, estão inscritas duas bulas papais. Além da de Urbano VIII, a de Gregório XV que vetava a entrada a mulheres.
POR ENTRE FETOS GIGANTES
Margarida Figueiredo rir-se-á ao saber que há poucos séculos não poderia desfrutar do passeio pelo bosque encantado. É do Luso, conhece o Buçaco de cor… mas de dia. Enquanto calcorreia a calçada de pedra que nos levará ao bosque dos fetos, não larga a lanterna. “Já me perdi das amigas”, justifica. Ermelinda Oliveira, também de 67 anos, que “vai a Fátima enquanto o diabo esfrega um olho”, desencaminhou a amiga para vir. “Estive cá no ano passado e deram uma lição de história e de botânica que me encheu as medidas”, recorda, equipada a rigor com roupa desportiva e sapatilhas.
Sem a luz do luar, o passeio tem o seu “quê” de aventura, obriga a cuidados redobrados com as raízes seculares que criam altos relevos no chão ou com os limites da calçada. A “professora” de botânica (e de fauna, já agora) a que Ermelinda se referia é Anabela Bem-Haja. Engenheira florestal da Fundação Mata do Buçaco, fala das árvores como se fossem pessoas, integradas em comunidades, povoadas de histórias, de passado. Nos 67 hectares do arboreto (uma das quatro partes em que está dividida a Mata), concentra-se a maior parte das espécies exóticas, árvores de dimensões notáveis e configurações diversas. É por lá que se inicia o passeio. Abraçamos as sequoias, admiramos incrédulos o eucalipto da Tasmânia, que Anabela garante ser “uma flor crescida, a maior do mundo”, comprovamos o tronco manchado dos plátanos, “a fazer lembrar as fardas dos militares” que, ficámos a saber também, são ótimos despoluidores das cidades.
A pouca luz que atravessa as copas das árvores vai desenhando um rendilhado no chão, o incenso que alguns participantes seguram aproxima do universo monástico. O Vale dos Fetos, onde agora estamos, é um dos mais carismáticos pontos da Mata. São fetos grandes, crescidos tanto que se assemelham a árvores. Pelos contornos, assim à luz da noite, seria fácil confundi-los com palmeiras. Anabela explica que em Portugal há apenas cinco sítios em que fetos como estes se podem observar. A dimensão surpreendente deve-se, diz-nos, ao facto de “estarem num vale, protegidos por árvores de grande porte que lhes proporcionam muita sombra e graças a uma linha de água que lhes dá a humidade de que precisam”.
Os fetos não foram plantados pelos Carmelitas Descalços, mas a presença dos monges não nos larga por muitos instantes. A Fonte Fria, a mais conhecida de todas as fontes do Buçaco, fica ali ao lado. A água fresca, onde se escondem salamandras, corre no centro de toda a escadaria, monumental, com os seus 143 degraus. Liliana lembra que no tempo dos monges, “a fonte e as escadas com vários vãos já existiam. Atualmente tem muito mais grandiosidade”. Mesmo ali ao lado, há vestígios dos pomares que os Carmelitas plantaram, aproveitando para a rega a água em abundância.
O CEDRO QUE É UM CIPRESTE
As escadas conduzem-nos até ao coração da Mata. Estamos na Floresta Relíquia, que conserva a floresta portuguesa primitiva, espécies autóctones como o sobreiro, o azevinho, o medronheiro, o aderno. É aqui, também, que nos cruzamos com a Via Sacra (esse é outro percurso, que se pode fazer de dia), num dos seis passos da Prisão, que antecedem os da Paixão e raramente são representados. “Este é um dos trilhos mais dolorosos do Buçaco, um percurso de três quilómetros e meio sempre a subir”, desafia Liliana. A recompensa é chegar ao ponto mais alto, a 547 metros de altitude e observar uma panorâmica de 360 graus. Nós passaremos por apenas três Passos, cada qual com sua casa e atravessaremos as Portas de Siloé, que representam a entrada na cidade da Palestina. O aroma cítrico vem do Cedro do Buçaco. “Fazia os monges lembrar Jerusalém “, revela Anabela. O cedro que leva a Mata no nome tem uma história particular. Devido aos belos e numerosos exemplares existentes no Buçaco, o classificador deu-lhe esse nome… erradamente. Soube-se mais tarde que a espécie é originária do México e que não é cedro, mas sim um cipreste.
A visita está quase a chegar ao fim. Antes de percorrermos a avenida plana que os monges faziam para entrar no Convento, depois de conseguida a autorização nas portas de Coimbra, há um descanso merecido no Passo de Caifaz, com vista para toda a Bairrada e, de dia, também para o Atlântico. Já passa da meia-noite quando a visita termina perto do ponto onde começou. Ana Sousa veio de Coimbra com um grupo de amigos entre os 26 e os 30 anos. Gostaram do passeio, dispensavam os flashes… O sentimento que partilha é unânime: “Ficámos com vontade de voltar de dia.”
BUÇACO AO LUAR
Nas noites de 12 de Agosto e 12 de setembro há visitas noturnas guiadas à Mata Nacional do Buçaco.
O ponto de encontro é às 22 horas no Convento de Santa Cruz do Buçaco (junto ao Palace).
As marcações podem ser feitas através do 231 937 000 oudo 96 300 7857.
Custo: €3
Mais informações sobre esta e outras visitas na Mata em www.fmb.pt