Fátima Magalhães tinha sete anos quando entrou pela primeira vez na procissão. Até aos 11 nunca faltou à chamada. Agora, que já passou a barreira dos 70, é com um brilhozinho nos olhos que recorda esses tempos. “Só deixei de participar porque o vestido já não servia. Mas nunca me desprendi. Ia sempre ajudar a vestir as meninas.” Se era necessário subir uma bainha, compor um vestido, arranjar um par de sapatos brancos ou dar um jeito ao laço, Fátima estava lá para dar uma ajuda. Nada complicado para quem trabalhava num ateliê de costura no centro da cidade.
Quando casou afastou-se, mas por pouco tempo. Só até a filha, Paula, ter idade para participar. Há décadas que coordena as pequenas em dia de cortejo, verifica se estão vestidas como mandam as regras ou se as fitas ainda se encontram presas com laço. Mas por ela passam também as inscrições. “As meninas têm de ter no mínimo sete anos, mas fazer oito no decorrer deste ano. Não há limite máximo definido”, refere. No entanto, como durante a festa a atenção se concentra nas pequenas vestidas de branco, dos pés ao pescoço, faixas vermelhas e azuis à cintura, e fogaças à cabeça, “por vergonha” são raras as maiores de 13 a integrar o desfile. “Antigamente eram as donzelas, mas agora são bem mais pequenas.” Para cumprir a tradição apenas participam “crianças impúberes”, oriundas de todo o concelho, que levam à cabeça as fogaças do voto (o famoso pão doce oferecido a São Sebastião, que livrou o povo da peste), coroadas de papel de prata de diferentes cores, recortado com perfis do castelo. “Em termos de tradição é a festa mais importante do concelho”, salienta Cristina Tenreiro, vereadora da cultura da Câmara de Santa Maria da Feira.
DESFILE DE DONZELAS A duas semanas da festa, Fátima Magalhães já iniciou o périplo pelas escolas da cidade. Com alguma ansiedade, as pequenas aguardam a visita. “É uma alegria, já todas me conhecem”, afiança. Além de contar a origem da festa aos alunos, entrega também as fichas de inscrição. Tarefa repetida há décadas, sempre no início do ano. Nos outros estabelecimentos de ensino do concelho, cabe aos professores contar a história do culto e convidar as alunas a participar. Embora lhe assegurem que “podem vestir calças brancas “, o convite não se estende aos elementos do sexo masculino.
A tradição passa de geração em geração. “Quem não conseguiu entrar quando era criança, porque não tinha vestido, agora faz todo o gosto de ver as netas no cortejo.” Atualmente, a indumentária deixou de ser um problema. “A minha casa parece uma boutique, não faltam vestidos e calçado para emprestar. E a Câmara também cede sem qualquer custo”, informa.
A abrir o desfile seguem as miúdas mais pequenas e a terminar as mais velhas com as peças grandes, ou seja, uma réplica do castelo da Feira, que ultrapassa os sete quilos, um tabuleiro com flores e velas, assim como três fogaças de grande dimensão. Geralmente, são estas últimas que despertam maior interesse. “Levar o castelo é o objetivo que todos os pais querem ver as filhas cumprir”, confidência. No entanto, Fátima Magalhães não abre exceções. “Nunca aceitei pedidos de ninguém. Só no dia é que se decide quem leva as peças grandes”, remata.
A Festa das Fogaceiras é o mais emblemático ritual do concelho da Feira, cuja origem se prende com o voto feito ao mártir São Sebastião em 1505, dado o surto de peste que dizimou grande parte da população. Na época, o povo pediu proteção divina oferecendo em troca um pão doce, ao qual chamaram fogaça. O santo cumpriu e, em agradecimento, o povo faz a festa. “É um trabalho coletivo”, diz Cidália Costa, 54 anos, outra das envolvidas nestas andanças. Durante duas semanas, inspeciona e renova os enfeites de tabuleiros e bandeiras. “Como são todos feitos em papel é necessário ver um por um”, vai dizendo enquanto dobra e corta mais umas folhas coloridas. À sua frente, numa mesa alinham os lavores usados para dar colorido à festa. Há papel de lustro e prata, cola branca, e tesoura. “A maior dificuldade é encontrar papel de prata duro. Esse sim, com a ajuda do vento, parece que canta à passagem das meninas”, afirma. Nos últimos anos, a maior dificuldade prende-se com a falta de papel. “Sempre que era preciso renovar as bandeiras, alguém tinha de se deslocar a Espanha. Agora já nem lá se encontra”, conta Cidália.
Apesar da diferença de idade, ambas partilharam a mesma experiência em criança. Também elas integraram o desfile, vestidas de branco. “Tínhamos muito respeito por toda a cerimónia. Agora as meninas conversam e chegam mesmo a comer parte da fogaça”, crítica Fátima Magalhães. “Assim vão com menos peso à cabeça e mais no estômago”, diz Cidália Costa, sem tirar os olhos dos pequenos tabuleiros.
FOGAÇA FEITA POR ELAS Como sem elas a festa não se faz, no Café Trovador são também as mulheres que tratam da fogaça. Já não amassam à mão, mas são elas que dão forma a este pão doce, cujo formato é inspirado na torre de menagem do castelo da Feira com quatro coruchéus. Esta é única casa da cidade onde isso acontece. Ramiro Santos, um dos sócios já ouviu, por diversas vezes, dizer que “a forma do Trovador não é a mais bonita ao contrário das outras em que só os homens metem a mão na massa”. A crítica não parece afastar os clientes espalhados por todo o País. Nem se reflete nos muitos pedidos provenientes do estrangeiro. O espaço conserva a imagem dos cafés do século passado, embora com upgrade ao nível do balcão. “As cadeiras e mesas ainda são do tempo do primeiro proprietário”, assegura.
Embora esteja um pouco fora do circuito do centro histórico, neste estabelecimento coze-se fogaça há 40 anos. O segredo não está na receita, mas na qualidade dos ingredientes. “Ainda usamos ovos”, garante. A rotina diária apenas se altera durante a Viagem Medieval e no período da Festa das Fogaceiras, em que quase não há mão para tanto pedido.
PROGRAMA DA FESTA
Todos os anos, a 20 de janeiro, Santa Maria da Feira cumpre o secular voto em dia de feriado municipal. É assim há mais de cinco séculos, e embora o programa se tenha alterado ao longo dos tempos, há momentos que se repetem ano após ano. “A cidade veste-se no seu melhor para ver passar o desfile”, conta Cristina Tenreiro. O cortejo cívico sai da Câmara Municipal às 10 e 30 rumo à igreja matriz, onde meia hora mais tarde é celebrada a missa. À tarde, a partir das 15 e 30, as meninas voltam a integrar a procissão para percorrer as ruas do centro histórico da cidade, enquanto mais de 2 mil pessoas se acotovelam para ver cumprida a promessa. Do cartaz para este dia fazem ainda parte o tradicional teatro de revista A Derrocada Final, no Cineteatro António Lamoso, às 21 e 30. O programa paralelo de animação, organizado também pela Câmara Municipal, já está a decorrer e inclui, entre outros, concertos, exposições, entronização de confrades e uma mostra de degustação de fogaça.
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