Percorremos quatro aldeias de Góis e, confessamos, ficámos cansados. Mas o passeio supera qualquer programa anti-stress num SPA.
Convém referir que pouca experiência tenho em caminhadas (à exceção daquelas que o comum dos mortais pratica regularmente). Daí que, ainda assim, parti convencida que “iria ser canja, basta levar calçado confortável, água fresca e sandochas para enganar o estômago”. Puro engano, percebi mais tarde. O ponto de encontro com os restantes caminheiros tinha sido marcado para as 8 e 30, junto aos Bombeiros Voluntários de Góis, onde um autocarro nos haveria de levar à Pena, a 14,5 km desta vila, conhecida pela concentração de milhares de motards (a última decorreu no passado fim de semana). Seria a primeira das quatro aldeias de xisto a percorrer a pé num total de 9,2 km, que incluía Aigra Velha, Aigra Nova e Comareira, região integrada na Rede Natura 2000. O grupo, mais de 30 pessoas, reconhecia-se facilmente nas ruas ainda vazias àquela hora da manhã. Mochilas às costas, cantil, bastão de caminhada (que jeito me teria dado se o tivesse levado…). Alguns tinham vindo de propósito de Lisboa, de Pombal, de Oliveira de Azeméis. Outros aproveitavam a estada de férias nesta zona do Pinhal Interior. Na curta viagem de autocarro, as curvas e contracurvas preparavam-nos para o solo escarpado da serra da Lousã. Lá em baixo, escondida no meio de penedos, a Pena aguardava-nos, tranquila, com um silêncio apenas interrompido pelo correr das águas da ribeira. Das quatro, é a aldeia com maior número de habitantes (cerca de 20), mas não se via vivalma. Apenas um cão nos dava as boas-vindas. O dia não era dos mais quentes (valha-nos isso!), mas o calor começava a apertar e convinha não demorar para iniciar a caminhada. Os nossos guias, Paulo Silva, da Trans Serrano, e Sandra Marques, da Lousitânea (Liga dos Amigos da Serra da Lousã), dão-nos as boas-vindas. O percurso é o primeiro pedestre em Góis e tem cerca de um ano e meio. “Tentámos evitar passar por locais mais bonitos mas de difícil acesso”, contam. Falam-nos do projeto Tradições do Xisto que pretende “transformar as quatro aldeias num núcleo vivo”. “Grande parte está descaracterizada ou despovoada. Há aldeias que têm alambique e forno comunitário. O objetivo é pôr tudo a funcionar.” A região é rica em espécies protegidas (fauna e flora). Entre rochas quartzíticas, sobrevoam a cegonha preta e o falcão peregrino. No solo passeia-se a salamandra lusitânica, as trutas e raia ibérica são presença assídua nos cursos de água. O veado é um dos mais admirados (há cerca de 800 exemplares). “Frequentam os quintais e as hortas. Os machos perdem as hastes todos os anos e roçam nas árvores.”
PENA-AIGRA VELHA
Deixamos a Pena (onde haveremos de regressar). Partimos, quase em fila indiana, ladeados por um pequeno curso de água cujo barulho relaxa. Do outro lado, abaixo de uma ribanceira, a ribeira acompanha-nos, calma e de águas límpidas. Passamos por urzes (onde retiram mel), folhosas, castanheiros, mas também pelos devastadores eucaliptos e mimosas. Fala-se da praga destas plantas consideradas destruidoras. Paulo Silva mostra-nos “pinhas roídas pelos esquilos. Uma prova que eles andam por aqui, reproduzem-se facilmente, como os coelhos.” Continuamos em fila, passos lentos, admirando o que está à volta. De repente, escutam-se gritos. Pedro, 9 anos, acaba de ser mordido por vespas que saíram de uma colmeia. Vale-lhe uma cuvete de gelo, que os pais trazem na mochila, para acalmar a dor. “Passamos ao lado e elas assustaram-se, não tocámos à campainha nem pedimos licença”, brinca Sandra tentando suavizar o momento. Pedro acalma e prossegue a viagem. Está habituado a caminhadas. Veio de Pombal com os pais e amigos. Na semana anterior acamparam na aldeia de Janeiro de Baixo. “É a primeira vez que integramos uma caminhada, habitualmente fazemo-las sozinhos”, conta o pai, Manuel António. Apaixonados por turismo de natureza, a rede do xisto não lhe é nova. Já visitaram Gondramaz, Casal de S. Simão, Benfeita. “Adorámos a de Fajão, em Pampilhosa da Serra, é uma das mais bonitas.” Passa das 10 da manhã, a temperatura aumenta. Paramos uns minutos numa sombra, para beber água e retomar o fôlego. “Toquem nas folhas deste carvalho negral, parecem veludo”, convida o guia. Segue-se uma subida com algum declive. José Alberto Rodrigues, vice-presidente da autarquia de Góis, começa a perder o fôlego. “Devia ter-me preparado melhor.” Vai apontando para o chão, onde se avistam ramos de carqueja. “Antes era usada para acender o forno, agora dá para fazer chá e até arroz.” “Quantos quilómetros caminhámos?”, pergunto. “1,5 km.” “Só?” espanto-me eu e os outros. “Normalmente, durante uma hora anda-se 4 km, mas na serra caminha-se menos” explica Paulo de binóculos ao peito. Começamos a avistar o pequeno núcleo que constitui Aigra Velha, habitada apenas por um casal. No chão, aqui e ali, há vestígios de excrementos de veado. “Qual é a melhor altura para os ver?”, questiona um dos participantes. “A partir de outubro, novembro, a meio da tarde.” “Para estas pessoas que aqui vivem, os veados são como os cães, estão sempre a aparecer e a saltar vedações.” Entramos em Aigra Velha e refrescamo-nos na fonte da Quelha da Bica como se, neste pequeno povoado, fosse preciso dar nomes às ruas, onde bebemos água e enchemos o cantil. O casal, André e Elsa Claro, são os únicos habitantes. Vivem da pastorícia. Ela está à nossa espera (como aguarda qualquer caminheiro que se meta ao caminho) e abre-nos o curral onde estão 36 cabrinhas. “Já tive 400”, avisa. É dia de aniversário de Elsa faz 49 anos e o marido “foi à vila comprar os frangos para o almoço.” “Hoje é dia de festa, não vou sair com as cabras. Também tenho os meus direitos”, proclama. Durante anos dedicou-se à produção de queijo, “mas agora as cabras estão prenhas e não dá para fazer nada.” “Cheguei a ordenhar 50 cabeças de gado num dia com as minhas mãos”, conta, sorridente, com a pele curtida pelo sol. Elsa gosta de receber quem chega. “Para mim é uma alegria, então não é? Estou sempre sozinha.” O marido divide-se entre a pastorícia, vigia florestal e ainda vai à vila buscar medicamentos para os idosos da zona. O exterior das casas foi arranjado ao abrigo do Programa de Valorização das Aldeias do Xisto. O forno e o alambique da aldeia estão a ser recuperados. “É importante requalificar tudo o que faz parte do mundo rural”, conta-nos a autarca de Góis, Lurdes Castanheira, empenhada na valorização deste património que será, certamente, um dos maiores postais turísticos da região.
AIGRA VELHA-AIGRA NOVA
Deixamos Aigra Velha. Estamos no meio da serra da Lousã e vê-se parte do Buçaco e Caramulo. Lá em baixo, avista- mos a segunda aldeia. Parece perto. Deixamos uns metros de asfalto para trilharmos caminhos estreitos, a descer, entre a serra. “Era o caminho que as vacas faziam”, explica Paulo Silva. Passamos por pequenos lençóis de água, tanques de chafurdo onde os animais matavam a sede. E eu que, mais uma vez, penso no bendito bastão de caminhada tento segurar-me para não cair nas descidas. O calor aperta. Francisco, 7 anos, o mais novo do grupo, cantarola lá atrás. Escuteiro há um ano (Grupo 94, Lisboa) parece já ter calo para isto. “Sabes qual é o lema dos escuteiros?”, pergunta-me. “Sempre prontos.” Retenho a mensagem. Mais à frente, Leonor, 8 anos, cai e roça a perna numa pedra. A mãe passa-lhe água na ferida. O guia conta que, lá em baixo, a ribeira do Morro “possui espécies raras porque não teve ocupação humana.” Quase uma hora depois chegamos a Aigra Nova (dizem que terá mais de 1400 anos), onde o aglomerado das casas é maior. A aldeia tem uma das lojas do xisto da região onde se vendem produtos genuínos. Em fevereiro, é palco de um Entrudo à Moda Antiga que, entre bailaricos e vestes de pano, traz mais gente e animação. São 13 horas. À nossa espera está uma merenda com os sabores genuínos da terra. Broa de milho e de carnes (de chorar por mais!), azeitonas, queijo de cabra, filhó, chanfana e mel. Tudo preparado por Manuel e Lurdes, 63 e 55 anos, respetivamente, dois dos quatro habitantes. O calor pede sombra e água. Sandra Marques mostra-nos a maternidade de árvores, um projeto de educação ambiental criado pela Lousitânea há três anos que alerta para “a importância das árvores como seres vivos.” Além da reprodução e plantação de espécies autóctones (como o freixo), convidam ao seu apadrinhamento.
AIGRA NOVA-COMAREIRA-PENA
É tempo de partir. Este há-de ser o percurso mais pequeno que nos leva à Comareira (cerca de 600m). Paramos no miradouro, à sombra de um castanheiro. Como o sol já vai alto e o grupo mostra algum cansaço, espreitamos a aldeia do alto. “A grande atração é o facto de ser habitada por um homem e quatro mulheres [risos]”, lança Paulo Silva. O homem em causa chama-se Alfredo e continua a levar as cabras para o monte. “Estas aldeias precisam de gente para viver e cuidar da horta”, atira Sandra. Alguém se alista? A aldeia tem meia dúzia de casas recuperadas, uma das quais de turismo rural a Casa da Comareira (sem televisão, nem rádio) gerida pela Lousitânea (http://lousitanea. org), a favor do Fundo para a Preservação do Maciço da Serra da Lousã. Não se avista ninguém. “Devem estar a dormir a sesta”, pressentimos. Eu e o fotógrafo ficamos para trás, embalados pela beleza do xisto. O grupo vai lá à frente. Apressamos o passo e subimos um monte escarpado. “A vantagem de chegarmos primeiro é ver a vossa cara a subir”, ri Paulo Silva. Cheira a eucalipto. São 14 e 30 e o sol está a pique. Subimos uma estrada em terra batida e caminhamos entre pinheiros, castanheiros. Alguns, corajosos, sobem a um miradouro onde se avista a serra da Estrela. Continuamos. Metros e metros calcorreando a serra (este percurso parece mais sinuoso ou será o calor que nos queima o pensamento?). “Que tal pôr como título do seu artigo: Sangue, suor e lágrimas? “, desafia um dos participantes. Não iremos chegar a tanto. Escuta-se o silêncio da natureza. As minhas pernas quase sabem o caminho sozinhas. A esta altura, só querem chegar ao destino. Ao longe escuto o barulho das águas da ribeira da Pena, a aldeia final. Pergunto a Afonso, 10 anos, filho de Paulo e Sandra, se “ainda falta muito?”. “É já ali, depois daquela cortada.” Novas subidas, carreiros, mais pedras soltas. Alguns caminheiros ficaram para trás, é preciso esperar por eles. Avistamos um pequeno trator e, enfim, alcançámos a Pena. A aldeia onde começámos esta viagem pela natureza. “Objetivo atingido”, diz Sandra. “Devemos bater palmas”, desafia uma das caminhantes. Adélia e Elisabete Pedrosa descansam. Vieram com mais cinco pessoas. Adoraram a experiência. “Estes passeios fazem parte da nossa maneira de estar.” Uns sentam-se no chão, esgotados. Outros refrescam a cara na fonte de água pura. São 15 e 15. Os Penedos de Góis, onde dizem existir fósseis marinhos, observam-nos. A aldeia tem duas casas de turismo rural (a da Cerejinha, www.cerejinha.com, e a do Neveiro, www.casadoneveiro.com) que vai levando mais gente ao povoado. “Hoje formamos o dobro das pessoas que habitam estas quatro aldeias juntas “, recorda Paulo. Tiramos uma foto de família debaixo de um castanheiro e apanhamos o autocarro de volta a um outro mundo. Não tão puro como este, não tão verdadeiro quanto o que trilhámos. Haveremos de voltar. PRÓXIMOS PERCURSOS PELAS ALDEIAS DO XISTO Lousã (5 Set) Foz do Cobrão (12 Set) Figueira (3 Out) Martim Branco (10 Out) Casal de S. Simão (31 Out) www.aldeiasdoxisto.pt www.transserrano.com