Consoante a zona do cérebro afetada, o AVC pode ter várias consequências, atingindo a capacidade de as pessoas se movimentarem ou a forma de exprimirem emoções. Os neurologistas Miguel Rodrigues, da Sociedade Portuguesa de Neurologia, João Sargento, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, e Vasco Salgado, do Hospital CUF Sintra e CUF Cascais, explicam quais são.
Movimentação
As “alterações motoras”, explica João Sargento, coordenador da Unidade de AVC do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), que resultam na “falta de força de um lado do corpo” são uma consequência da área do cérebro que foi afetada. Que tanto podem decorrer de uma lesão “no hemisfério cerebral esquerdo”, nota Miguel Rodrigues, da direção da Sociedade Portuguesa de Neurologia, como no “hemisfério cerebral direito”.
Esta “paralisia ou fraqueza”, continua o médico de Coimbra, afeta a vida diária “como não ser capaz de carregar no acelerador do carro”, exemplifica, é das “sequelas mais comuns no AVC”.
Vasco Salgado, neurologista no Hospital CUF Sintra e CUF Cascais, acrescenta ainda que “estas paralisias são, em regra, unilaterais e relativamente desproporcionais, ou seja, a mão é mais afetada do que o braço e este mais do que a perna”.
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No entanto, se o AVC “ocorrer na zona do cerebelo” acontece um “desequilíbrio no andar e problemas de coordenação”, atesta Miguel Rodrigues.
Sensibilidade
As alterações da sensibilidade podem resultar de “qualquer lesão ao longo da via que se estende do córtex cerebral, onde está representada a sensibilidade, até à medula”, explica Vasco Salgado. O que acontece, como diz João Sargento, “é uma incapacidade de sentir um lado do corpo” que pode “mesmo resultar em dores”. Esta alteração, sublinha o médico de Coimbra, “causa uma confusão de estímulos sensitivos” e o doente pode ter frio, calor ou formigueiro. A perda é tanta que “se cair um tacho com água a ferver nessa zona, a pessoa pode não notar”, ilustra.
Comunicação
A sequela que afeta a linguagem “resulta, habitualmente, de uma lesão localizada nas regiões temporal e frontal do hemisfério esquerdo”, refere o especialista Vasco Morgado. Esta alteração, denominada afasia, diz, faz com o doente não compreenda o que lhe dizem, não consiga articular palavras, além de, também, não conseguir escrever. “É funcionalmente terrível, porque a fala é muito importante”, admite João Sargento.
Deglutição
Embora a dificuldade em engolir possa “resultar de lesões entre o córtex cerebral e o tronco cerebral, são mais frequentes e habitualmente mais graves quando localizadas no tronco”, refere o médico da CUF. Regra geral há uma “maior dificuldade em ingerir líquidos do que sólidos”, nota o neurologista João Sargento, devido às lesões causadas na face. Esta dificuldade em engolir, a que se dá o nome de disfagia, sublinha, pode dar origem a alguns perigos, “como a pessoa engolir alguma coisa que vai direta para o pulmão”. Por isso, continua, às vezes é “preciso fazer um buraco na parede do abdómen para colocar um tubo que vai direto ao estômago” que vai permitir alimentar o doente.
Perceção espacial e de visão
Segundo o neurologista Miguel Rodrigues, as alterações de visão podem acontecer devido a “lesões do lado direito ou esquerdo do cérebro”. Apesar de não haver cegueira, “perde toda a visão de toda a informação que vem de um dos lados do corpo”, refere João Sargento. “O olho recebe informação, mas essa informação não chega ao cérebro.”
Caso haja uma lesão “do hemisfério direito envolvendo o lobo parietal”, nota Vasco Salgado, “o doente poderá igualmente não se aperceber da metade esquerda” do seu corpo ou “que a mesma não lhe pertence”, um fenómeno a que se dá o nome de “negligência”.
Cognitivas ou de pensamento
O AVC pode levar a um “período de confusão aguda”, explica o médico da CUF, que resulta em apatia. Esta inércia, vinca, pode acontecer por danos em “ambos os hemisférios cerebrais”.
Nestes casos, aparecem falhas “na memória, no raciocínio lógico e na capacidade de cálculo”, enuncia João Sargento.
Comportamento
As alterações comportamentais são consequência de lesões originadas nos “dois hemisférios cerebrais”, explica o médico de Coimbra. Estas mudanças levam a situações de “agressividade”, no entanto, acrescenta, a agressividade também pode ser “reativa”, porque o doente se vê numa “situação de saúde difícil”.
Emoção
A depressão é a “mudança emocional mais frequente”, diz Vasco Salgado, depois de um AVC. “É uma sequela relativamente frequente que atinge um terço dos doentes e que pode ter um papel prejudicial no plano de recuperação.”
5 perguntas a Renata Ferreira Domingos
Psicóloga clínica/neuropsicóloga no Hospital CUF Sintra e na Clínica CUF S. Domingos de Rana
Há alterações emocionais depois do AVC?
Sim e são diferentes de pessoa para pessoa. As alterações logo após o AVC podem não ser as mesmas do que as que se observam algumas semanas depois, devido à reestruturação do cérebro após a lesão. As alterações emocionais e comportamentais são comuns após um AVC, não apenas no impacto que tem a nível psicológico, mas também nas alterações emocionais decorrentes da lesão orgânica. As que são originadas pela lesão cerebral englobam as consequências psicológicas da potencial perda de autonomia e consequente alteração de estilo de vida; as alterações originadas pela lesão cerebral irão depender das áreas do cérebro afetadas pelo AVC.
Que alterações podem existir?
O cérebro controla o nosso comportamento e as nossas emoções. E, como consequência da lesão cerebral, podem existir alterações repentinas e imprevisíveis nas emoções. A pessoa poderá chorar quando acontece algo engraçado, e rir quando acontece algo triste, sem que tenha controlo sobre isso. Esta dificuldade em regular o humor chama-se labilidade emocional. Pode ocorrer irritabilidade excessiva, descuido com tarefas que anteriormente eram importantes, uso de palavrões quando antes não o faziam, confusão mental ou maior desinibição. As pessoas poderão agir de uma forma que não lhes é característica, por exemplo, não ter vontade de fazer nada, dizer ou fazer coisas inoportunas, serem muito impulsivas. A pessoa poderá experienciar maior frustração, depressão, ansiedade e sentimentos de perda. A própria pessoa pode não ter noção destas alterações emocionais.
Quais as mudanças mais comuns?
A depressão e a ansiedade são alterações bastante comuns. As alterações decorrentes da lesão orgânica irão depender da sua localização; não obstante, é frequente ocorrer raiva, apatia e a tal labilidade emocional.
Por que razão isso ocorre?
A lesão das células cerebrais – por ausência de oxigénio ou por rutura de vasos cerebrais – implica alterações físicas como alterações motoras ou da fala. De igual forma, as estruturas cerebrais que regulam as emoções e o comportamento poderão ser afetadas, levando a alterações emocionais
Essas alterações podem ser revertidas?
As alterações emocionais são muitas vezes mais intensas logo após um AVC, melhorando ao longo do tempo e à medida que o cérebro recupera. Todas as alterações podem ser trabalhadas e minimizadas com o apoio adequado a cada situação, seja através de psicoterapia ou através de um plano de reabilitação cognitiva.
O AVC afeta a memória?
A neurologista Socorro Piñero esclarece
O AVC provoca lesões que vão resultar em algum tipo de alteração a nível cognitivo. O doente, após o AVC, pode apresentar problemas de atenção ou concentração além de dificuldades na planificação e execução das tarefas, na resolução de problemas e na tomada de decisões. Em função da área do cérebro que foi lesada, as alterações cognitivas serão diferentes e, frequentemente, acompanham-se de depressão ou alterações de humor. Estudos assinalam que um terço das pessoas que sofreram um AVC tem demência ao fim de três meses.
Em poucas ocasiões, a instalação da demência é súbita, só no caso de lesões em áreas críticas para o funcionamento cognitivo, como o hipocampo, tálamo-medial ou sistema límbico, ou no caso de doentes com AVC prévios. Muitos dos AVC são clinicamente silenciosos, provocando deterioração cognitiva de um modo progressivo e às vezes tardiamente reconhecível.
O AVC e a demência secundária
A neurologista Socorro Piñero da Clínica de Santo António, escreve sobre o tema
As lesões cerebrais originadas pelo AVC podem provocar deterioração das funções cognitivas com perda da autonomia da pessoa, doença que conhecemos como demência vascular. Segundo o estudo de 2018, realizado por investigadores da Unidade de Investigação em Epidemiologia (EPIUnit) do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), trata-se da principal causa de demência em Portugal, contrariando a tendência dos países ocidentais, nos quais a causa mais frequente de demência é a doença de Alzheimer. Este facto pode dever-se à elevada prevalência de AVC na população portuguesa. Com a modificação de estilo de vida, com uma dieta saudável e exercício físico regular associado ao controlo dos principais fatores de risco cardiovasculares podemos diminuir a incidência de AVC e, consequentemente, de demência vascular.
O choro e o riso sem controlo
José Leal de Loureiro, neurologista no Hospital CUF Viseu, fala deste problema
O que é o choro ou riso patológico?
Consistem em episódios súbitos de choro ou riso involuntário, geralmente sem uma causa circunstancial que os provoquem.
São uma das consequências dos AVC?
Sim, mas também de outras doenças que causem um dano cerebral significativo, como as demências e os traumatismos crânio-encefálicos. A sua prevalência estima-se ser aproximadamente de 10% nos doentes vítimas de AVC.
Porque surgem muitas vezes na sequência do AVC?
Porque o AVC pode ser destrutivo quer dos circuitos cerebrais que controlam a expressão emocional, quer de muitas outras redes de neurónios.
Atinge mais homens ou mulheres?
Os estudos mostram predomínio do sexo masculino.
Têm cura?
Não existem muitos estudos que avaliem como esta situação evolui após o AVC. Existe, no entanto, a impressão de que a sua frequência é maior nos primeiros meses que se seguem ao ACV, reduzindo-se um pouco após os primeiros seis meses. Não existe tratamento específico, alguns medicamentos parecem poder reduzir a frequência dos episódios, em cerca de 50 por cento. Uma variante psicoterapêutica, designada por terapia cognitivo-comportamental tem tido resultados escassos e não é de fácil aplicação nestes doentes, que podem ter outras limitações.