Mais de 400 mulheres portuguesas morrem por ano no País com cancro do ovário. O número é assustador e podia ser menor, caso a doença fosse diagnosticada mais cedo: cerca de 75% das mulheres são diagnosticadas já em estadios avançados, por não haver sintomas durante a fase inicial e, por isso, passar despercebido, e se forem considerados todos os estadios diagnosticados, a taxa de sobrevivência aos 5 anos aproxima-se dos 40%.
“O cancro do ovário é considerado um tumor raro, sendo talvez essa uma das principais razões para ficar, muitas vezes, esquecido”, explica Filipa Ferreira da Silva, oncologista na Unidade de Ginecologia da Fundação Champalimaud, em declarações à VISÃO. “É fundamental que as mulheres estejam atentas e não desvalorizem qualquer sinal e sintoma persistente”, alerta a médica, acrescentando que os mais comuns incluem, por exemplo, o aumento do volume abdominal, dor abdominal e pélvica, queixas urinárias, cansaço e falta de ar.
Cláudia Fraga não está incluída nos piores números divulgados sobre a doença. Foi diagnosticada com cancro no ovário aos 49 anos, em 2015, e as idas ao ginecologista e consultas regulares não evitaram o diagnóstico. “No verão, comecei a sentir-me mais cansada do que o habitual, mas achei que estava associado à idade”, conta à VISÃO. “Recordo-me que, em julho, tive uma cólica abdominal. Apesar de achar estranho, acreditei que não era nada significativo e o tempo foi passando”. Contudo, um mês depois, Cláudia sentiu umas pontadas, “como se fossem facadas”, ao debruçar o tronco. “As dores duraram a noite inteira e de manhã sentia-me como se tivesse corrido uma maratona. Acabei por consultar um médico para perceber o que se estava a passar e, após realizar uma TAC abdominal, fui diagnosticada com um tumor de 12 cm que não conseguiam confirmar se era benigno ou maligno sem a realização de operação”, explica.
Até à operação, o tumor de Cláudia cresceu mais 16 cm – quando foi retirado, já tinha 28 cm – e depois da cirurgia, seguiu-se um ciclo de quimioterapia que durou meio ano. “A partir daí, tive de realizar exames mensalmente, trimestralmente e, quando estava previsto mudar o período de vigilância para seis meses, apercebi-me de que algo não estava bem”. Já tinham passado três anos desde o primeiro diagnóstico. Numa colonoscopia, foi detetada uma recidiva que estava a afetar os intestinos. “Desta vez, foi bem pior”, conta Cláudia, que passou por mais quatro cirurgias e um ciclo de quimioterapia.
São as mulheres mais velhas que têm maior probabilidade de terem cancro de ovário, com a grande maioria das doentes a serem diagnosticadas com mais de 50 anos. Mulheres na pós-menopausa, com menopausa tardia – depois dos 52 anos – ou com a primeira menstruação antes dos 12 anos têm maior risco de desenvolver cancro do ovário, explica ainda Filipa Ferreira. “Isto pode estar associado ao facto de estas mulheres terem sido expostas a um maior número de ovulações, assim como às alterações hormonais inerentes a esse processo”, esclarece. Também a existência de uma história familiar de cancro, problemas de obesidade, nunca ter engravidado ou ter tido uma primeira gravidez após os 35 anos são fatores que podem aumentar o risco, de acordo com a especialista. Pelo contrário, gravidezes múltiplas, utilização de contracetivos orais e a amamentação “parecem conferir alguma proteção”, refere a oncologista. “Ter um ou mais fatores de risco não quer obrigatoriamente dizer que a mulher venha a ter cancro, assim como não ter fatores de risco ou ter um ou mais fatores protetores não impede que o mesmo possa ocorrer”, adverte, contudo, a médica.
Filipa Ferreira defende que deviam existir “campanhas muito mais agressivas para divulgar informação sobre esta doença”, já que o prognóstico de cancro do ovário é manifestamente melhor quando diagnosticado em fases iniciais, esclarece. “A dificuldade de diagnóstico, associada ao desconhecimento das próprias mulheres sobre a doença, faz com que seja imperativo falarmos sobre este tema”, acrescenta.
Também Cláudia Fraga, também presidente da Associação Movimento Cancro do Ovário e outros Cancros Ginecológicos (MOG), que criou juntamente com Cláudia Marques, afirma que “existe uma grande falta de conhecimento e literacia em saúde, sobretudo, na área do cancro do ovário”. “As mulheres que já foram diagnosticadas com este tipo de cancro sentem-se, por vezes, sozinhas e a informação é escassa”, diz. A presidente da MOG explica que, quando foi diagnosticada, “não existia nenhuma associação de cancro do ovário a quem os doentes, familiares e amigos pudessem recorrer para esclarecer dúvidas e obter informação sobre a doença”.
“Eu aceitei muito bem, mas há quem sofra muito. Foram os meus filhos que me raparam o cabelo, o Francisco com 15 anos e o João com 10”, lembra. “Era Professora de Educação Física e Desporto, sempre gostei de ensinar e de mudar comportamentos. Toda a nossa vida é alterada depois de um diagnóstico de cancro do ovário. Passei a olhar para as coisas de outra forma e, acima de tudo, fez-me querer ajudar outras mulheres que estão a passar pelo mesmo processo”, diz ainda.
É esse tipo de trabalho que a MOG desenvolve desde dezembro de 2019, ajudando e acompanhando as doentes com cancros ginecológicos, mas também os familiares e amigos de quem sofre com estas patologias. Ao mesmo tempo, colabora com várias entidades para garantir que o diagnóstico e tratamento das mulheres são realizados.
Porque não existe igualdade no acesso aos tratamentos de cancro no ovário?
Falarmos mais sobre o cancro do ovário pode fazer com que as mulheres fiquem mais alerta para sintomas e procurem ajuda com maior rapidez, o que pode mudar completamente o prognóstico da doença, defende Filipa Ferreira. A ciência vai ajudar a fazer o resto. “Felizmente, nos últimos anos, temos assistido a uma revolução naquilo que é o tratamento e investigação em cancro do ovário, com terapêuticas que demonstraram grande impacto no tratamento destas doentes, como por exemplo, os inibidores da PARP, e existem vários ensaios clínicos a decorrer no sentido de melhorar o prognóstico desta doença”, esclarece.
Contudo, até há pouco tempo, Portugal era dos únicos países da Europa que não oferecia uma alternativa de tratamento de manutenção em primeira linha para o cancro do ovário, financiada e disponível no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este tratamento é essencial para manter e prolongar a eficácia do tratamento após a quimioterapia.
“Nos processos de avaliação supranacionais das tecnologias de saúde, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) confere um tratamento diferenciado aos chamados medicamentos órfãos, destinados ao tratamento das doenças raras, como é o caso do cancro do ovário”, afirma Cláudia Fraga, acrescentando, apesar disso, que “o Infarmed não considera no seu processo de avaliação farmacoterapêutica e farmacoeconómica essa particularidade, ou seja, o cancro do ovário como doença rara”.
Neste momento, já existe essa opção, mas apenas para doentes de cancro do ovário com mutações sBRCA ou gBrca, o que equivale a 15% das mulheres com este cancro. “Se esta decisão é positiva, por um lado, ao permitir que algumas doentes tenham acesso a um tratamento de manutenção de primeira linha, é também discriminatória, já que não confere o mesmo acesso a todas as doentes”, diz Cláudia Fraga. “Essas doentes, além de serem a maior parte dos casos de cancro do ovário, são as que apresentam maiores necessidades médicas não atendidas, devido ao pior prognóstico existente”, acrescenta ainda.
Até ao momento, o Infarmed indeferiu os pedidos de comparticipação para tratamento de manutenção em primeira linha para mulheres cancro do ovário sem mutação genética. “A MOG já perguntou ao Infarmed quais os motivos do indeferimento e aquilo que nos responderam é que necessitam de mais dados, sendo que o Infarmed teve acesso exatamente aos mesmos dados que os seus congéneres de outros países europeus”, diz Cláudia Fraga.
Segundo a presidente da MOG, a desigualdade existe não só entre mulheres portuguesas – as que têm mutação sBRCA ou gBrca e, portanto, acesso a tratamentos de manutenção em primeira linha relativamente às outras doentes – mas também entre as mulheres portuguesas e as dos restantes países europeus, onde o tratamento de manutenção em primeira linha é disponibilizado. “No caso deste cancro, o acesso a um tratamento adequado vai significar mais anos de vida e com mais qualidade de vida. Estas doentes vivem verdadeiras corridas contra o tempo, e todos os dias contam”, garante.
Nexte contexto, a MOG foi ouvida, na última semana, na Assembleia da República por um grupo de deputados da Comissão Parlamentar de Saúde. “Não houve uma conclusão formal, mas três dos deputados presentes referiram que seria importante que a Comissão Parlamentar de Saúde fizesse um pedido de esclarecimento ao Infarmed sobre este tema”, refere Cláudia.
Globalmente, o cancro do ovário é o 8º mais frequente nas mulheres e a 7ª causa de morte por cancro nas mulheres.