“Sou o que os meus olhos veem / o que eu consigo imaginar”, canta Tiago Nacarato, em Areia Fina, lançado no pico da pandemia. O trecho do compositor (e participante do Festival da Canção, em 2020) ilustra, na perfeição, um tema que está na vanguarda da neurociência e remonta à Grécia Antiga. O poder da imaginação, que o filósofo Aristóteles designava por fantasia, é uma qualidade única que enriquece as nossas vidas. Sabe-se, hoje, que pelo menos 2% da população mundial é incapaz de visualizar voluntariamente imagens mentais, bem como recordar sons (músicas, vozes), cheiros e sensações táteis. Isso tem um nome: “afantasia” (deriva da palavra grega com o prefixo “a”, que significa “sem”) ou imaginação cega, e foi descrita pela primeira vez pelo cientista britânico Sir Francis Galton, na Época Vitoriana. Nas suas investigações, pediu aos participantes que pensassem nos pormenores do ambiente onde tinham estado a tomar café, fechassem os olhos e tentassem descrever as imagens que apareciam no “olho da mente”. A seguir, convidou-os a responder a um breve questionário sobre as características das imagens mentais (cores, luminosidade, contraste, definição, etc.) e daí resultou a publicação de um artigo, em 1880, sobre uma lacuna mental que era, até então, desconhecida. E desconhecida permaneceu, no meio científico, durante mais de um século, até que a realidade se impôs, através de um acaso feliz que captou a atenção de Adam Zeman, docente de Neurologia Cognitiva e Comportamental na Escola Médica da Universidade de Exeter, no Reino Unido: um homem procurou-o para perceber porque tinha deixado de aceder a imagens mentais após ser submetido a uma pequena cirurgia às veias coronárias. Corria o ano de 2005 e, assim que o estudo de caso foi publicado, o investigador foi contactado por outras pessoas que admitiam nunca ter tido essa capacidade. Foi o primeiro passo de um empreendimento frutífero que viria a apaixonar não apenas cientistas mas também artistas e profissionais famosos do universo das tecnologias e do entretenimento.
Viver sem imagens mentais
Zeman lançou mãos à obra e aplicou o teste Vividness of Visual Imagery Questionnaire (VVIQ) a 21 pessoas que se identificavam com o seu paciente, a fim de avaliar quão vívida era a imagem mental que conseguiam ter, numa escala de um a cinco, a partir de um conjunto de afirmações que envolviam detalhes (contorno da face e outras partes do corpo, posturas, formas e cores de objetos e paisagens, estáticas ou em movimento). Fez o mesmo com um grupo de controlo e chegou à designação de “afantasia congénita” (incapacidade de produzir imagens mentais à nascença), no artigo publicado na revista científica Cortex, em 2015.
Os resultados da pesquisa permitiram afirmar que a ausência de imagens no estado de vigília sucedia em 54% dos casos, embora 63% conseguissem sonhar (os que não tinham imagens mentais disseram sonhar em formas narrativas ou auditivas).
O norte-americano Tom Ebeyer encaixa neste perfil. Tinha 20 anos quando se deu conta de que via o mundo de forma diferente, desde criança. Descobriu-o acidentalmente, durante uma conversa com a namorada, a seguir a um encontro com uma amiga que não viam há algum tempo. A namorada observou que a indumentária da mulher era a mesma de há um ano. Intrigado, perguntou-lhe como era possível que se lembrasse disso. “Estou a vê-la, na minha mente”, respondeu-lhe. Ele não fazia ideia de que tal era possível. Estudou o assunto e tropeçou num artigo do The New York Times sobre os trabalhos de Zeman e veio a fazer parte da amostra.
Num vídeo intitulado “Por causa da afantasia, não sou capaz de imaginar as coisas na minha mente”, com mais de 36 mil visualizações, Ebeyer explica, com recurso a animação, como é viver sem imagens mentais: lembrar-se de acontecimentos, mas desligado das emoções que então sentiu; descrever as atividades do fim de semana no campo, ainda que sem os detalhes visuais e sonoros associados à experiência, por ter memória dela, mas não da mesma maneira que a maioria. Embora privado de reviver grandes memórias ou imaginar como será a sua vida no futuro, a descoberta levou-o a deixar de olhar para si como alguém com uma desvantagem e a contar a sua narrativa de modo mais estimulante. E revela como foi libertador saber que essa condição tinha um nome e que ele não estava sozinho. “Afinal, eu não era maluco. Estão a fazer-se investigações sérias sobre algo que é comum a líderes de negócios e criativos.” Mas até que ponto a afantasia constitui uma limitação na qualidade de vida de quem nasceu com ela?
Estás a ver ou queres que te faça um desenho?
Em 2017, Tom Ebeyer cofundou a Aphantasia Network (aphantasia.com), uma rede mundial para pessoas como ele. O site converteu-se numa comunidade de partilha de histórias, com artigos e estratégias para lidar com esta forma de ser. Há dois anos, Edwin Catmull, ex-CEO da Pixar e presidente da Walt Disney Animation Studios, afirmou à BBC News que fazia parte deste grupo. Ao fazer um levantamento sobre o tema junto dos seus colaboradores, o também produtor de Toy Story e A Princesa e o Sapo descobriu que partilhava a condição com alguns dos melhores animadores Disney (como Glen Keane, o criador de A Pequena Sereia), contribuindo para a divulgação do assunto junto da comunidade de criadores e da população.
Famosos “sem fantasia”
Apetece dizer “eles andam aí”, mas só recentemente se descobriram, ou foram descobertos
Edwin Catmull
Cientista computacional, ex-CEO da Pixar e presidente da Walt Disney Animation Studios, afirmou à BBC News que tinha o “olho da mente” cego
Blake Ross
Engenheiro de software e cocriador do navegador Mozilla Firefox, publicou um ensaio sobre a sua afantasia, que deu que falar nas redes sociais e nos jornais
Kathryn Nicolai
Autora do podcast Nothing Much Happens, com sucesso mundial, e do livro Quando nada acontece: histórias aconchegantes que serenam a mente e ajudam a dormir
Richard Herring
Humorista britânico, conta no seu site que descobriu, através de uma amiga, ser incapaz de visualizar imagens, e brincou com o assunto: “Devo ir ao wc para deficientes?”
Yoon Ha Lee
Autor de ficção científica, explicou num blogue que percebe agora porque saltava passagens de livros: não consegue ver imagens enquanto lê, como as outras pessoas
A Netflix chegou mesmo a receber uma menção honrosa pelo original Space Force (com o ator Steve Carell) por referir a afantasia num dos diálogos. “Não consigo ver o que descreves”, diz ele à rapariga, enquanto conversam, durante um passeio ao ar livre. Ela duvida e faz-lhe um teste: pede-lhe para fechar os olhos e imaginar uma cena. Ele só vê uma folha em branco, mas, acrescenta à interlocutora, “isso tem outras vantagens”.
É possível que tenha chegado a hora de olhar com outros olhos para esta descoberta intrigante. Assim como, em décadas recentes, surgiram movimentos a defender a tese da neurodiversidade para a Asperger (ou “aspies”), parece haver lugar para teorias inovadoras que consideram a fantasia como um continuum, com a afantasia num extremo e, no outro, a hiperfantasia, em que as imagens mentais produzidas são tão vívidas ao ponto de parecerem reais.
Num artigo publicado na Nature, no ano passado, o investigador Alexei J. Dawes e colegas avaliaram o impacto da afantasia na vida subjetiva e encontraram uma grande variabilidade de representações mentais entre indivíduos. Em junho desse ano, a equipa de Adam Zeman divulgou o paper “Phantasia – The psychological significance of lifelong visual imagery vividness extremes”. Os participantes da amostra preencheram o questionário VVIQ, foram incluídos em dois grupos (afantasia vs. hiperfantasia) e convidados a preencher vários testes. Apurou-se que, face ao grupo de controlo, as pessoas com afantasia apresentaram dificuldades em reconhecer faces e em lembrar-se de acontecimentos de vida e tinham mais apetência para profissões científicas e matemáticas; no polo oposto, as pessoas com hiperfantasia reportaram níveis elevados de sinestesia (associação involuntária de vários sentidos) e tendiam a trabalhar em profissões ditas criativas.
A explicação para o facto de pessoas com afantasia sonharem com imagens parece ter que ver com a neurobiologia do sonho, que parte do tronco cerebral, enquanto a visualização ocorre no córtex frontal e parietal. Embora a afantasia resulte, em certos casos, de lesões cerebrais ou de doenças psiquiátricas que prejudicam a capacidade de visualizar, ela deve ser entendida como uma variação na experiência humana. O mesmo se aplica à hiperfantasia, que está longe de ser apenas um estado alucinatório presente em doenças mentais.
Esta mudança de paradigma permite afirmar que, na ausência de imagens mentais conscientes, a representação mental acontece de outras formas, usando mecanismos de controlo como esquemas. No artigo científico sobre o significado psicológico destes extremos ao longo da vida, pode ler-se: “É de admitir que a afantasia e a hiperfantasia tenham vantagens e desvantagens, espelhando uma tensão entre dois tipos de processamento da informação humana: um, episódico e sensorialmente rico; o outro, semântico e factual.” Conclusão: a imaginação não se mede só pela capacidade de visualizar.
O passo seguinte consiste em usar técnicas de neuroimagem e explorar as potencialidades de quem tem o “olho da mente” cego ou, pelo contrário, bastante ativo, e encontrar revelações sobre a diversidade neurobiológica humana. Essa é a aposta do projeto The Eye’s Mind, coordenado por Adam Zeman e financiado pelo Arts and Humanities Research Council. O tema é de tal modo atual que, em 2019, se realizou a primeira conferência internacional para pessoas com “imaginação extrema”. John Lennon, o homem do clássico Imagine, haveria de gostar disto.
4 perguntas a Adam Zeman
Professor de Neurologia Cognitiva e Comportamental na Escola Médica da Universidade de Exeter, no Reino Unido
Como define a afantasia?
É uma dimensão da experiência subjetiva compatível com uma vida normal, criativa e gratificante. São pessoas com mais apetência para trabalhar em áreas científicas, tecnológicas e que envolvem o pensamento abstrato. Alguns participantes dos meus estudos disseram situar-se no espetro autista e cerca de um terço apresenta dificuldades no reconhecimento de rostos e na memória biográfica, é-lhes menos fácil aceder a episódios familiares e de amigos.
O que acontece no cérebro?
Quando imaginamos um rosto ou um lugar, ativamos certas áreas cerebrais. No caso das pessoas com afantasia há uma dissociação entre a atividade cerebral e o funcionamento percetivo, que se traduz numa comunicação reduzida entre a parte superior – onde se tomam decisões – e a inferior, ativada no processo da visualização. Geralmente nasce–se com a condição, que não é uma doença. Porém, pode ocorrer na sequência de acidentes vasculares cerebrais e perturbações psicológicas como depressão, despersonalização ou psicose.
Que implicações tem na vida diária?
Podem não ter grandes memórias de pessoas de quem estão afastadas há algum tempo, mas, por outro lado, tendem a conseguir estar mais presentes, é-lhes mais fácil estar no aqui e no agora, sem se distraírem tanto com pensamentos e memórias. Têm ainda a vantagem de não serem tão propensas a desenvolver perturbações como a de stresse pós-traumático.
O que o surpreendeu mais no último estudo?
No ano passado, publicámos os resultados do questionário aplicado a duas mil pessoas com afantasia, 200 com hiperfantasia e 200 entre os extremos. No primeiro grupo, metade conseguiam sonhar e houve quem descrevesse a falta de um “ouvido da mente”, o que sugere que a condição é transversal a outros sentidos e que a neurodiversidade existe.
O que é o projeto The Eye’s Mind?
É um estudo interdisciplinar que envolve filósofos, artistas e cientistas e tem como meta a análise da ativação cerebral das pessoas que estão nos extremos do espetro da fantasia no que respeita à vivacidade das imagens mentais, mas ainda estamos a angariar financiadores.