Reconhecida apenas desde 1990 enquanto condição médica, a misofonia é uma síndrome que ainda levanta muitas questões, tanto no que toca à sua origem como ao seu tratamento. Os seus sintomas incluem hipersensibilidade a sons específicos do quotidiano, por exemplo mastigar, sugar, arrotar, o barulho de talheres, bocejar, assobiar pelo nariz, fungar, limpar a garganta e outros, sons esses que podem conduzir a reações extremas e desproporcionais como irritabilidade, raiva e até pânico. Este tipo de reações, assim como os sons concretos que as suscitam, variam de pessoa para pessoa e os sintomas podem impactar os paciente de formas diferentes e, uma vez que estes não têm controlo sobre as suas emoções, dado que se trata de uma reação irracional, nos casos mais graves pode resultar em isolamento social e ter impactos significativos na rotina dos indivíduos.
Mas o que desencadeia a misofonia? Como pode ser tratada? Estas questões continuam por responder ainda que cada vez mais estudos estejam a debruçar-se sobre esta síndrome. Alguns investigadores estimam que a misofonia afeta mais de 10% da população, com até 4% dos seus pacientes a experienciarem sintomas significativos o suficiente para interferirem no seu funcionamento diário. Desde 2010, concretamente, várias novas pesquisas têm surgido sobre a condição, revelando ligações entre esta síndrome e outros transtornos, nomeadamente o transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo, transtorno de défice de atenção e hiperatividade e o espectro de autismo.
Os muitos estudos que têm vindo a ser desenvolvidos na última década permitiram dar passos importantes no sentido de conhecer melhor a síndrome e perceber que aspetos influenciam e desencadeiam a misofonia. Durante muito tempo, por exemplo, acreditou-se que a misofonia se tratava de uma condição estritamente ligada aos estímulos auditivos, já que eram estes que pareciam suscitar no paciente reações negativas. Mais recentemente, no entanto, veio-se a descobrir que outros estímulos sensoriais estão ligados a esta condição.
Um estudo publicado em finais de julho na Frontiers in Psychology, veio não apenas juntar-se ao corpo de estudos que sugere que outros fatores multissensoriais também desencadeiam os efeitos da misofonia, mas também propor que os estímulos visuais podem modular a reposta dos pacientes aos sons que os perturbam, oferecendo assim um possível tratamento à condição, ainda que prematuro.
Sons trocados
O estudo organizado pelo Laboratório de Perceção de Alto Nível do departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia procurou provar como a imagem associada a um dado som pode ser mais ou menos disruptiva para o paciente. Para tal, o grupo de investigadores criou um banco de dados de vídeos com troca de som, ou seja o banco incluía vídeos com um determinado som associado que poderia ou corresponder ao som factual imitido pela ação apresentada no vídeo ou corresponder a um som que, embora colocado de forma a parecer que se tratava do som original da ação, se tratava do som de uma outra ação. Por exemplo, um único som, neste caso o som de uma pessoa a mastigar uma bolacha, era colocado sob o vídeo original da pessoa a comer uma bolacha e colocado também sob um vídeo alternativo de uma pessoa a rasgar papel. O primeiro era um vídeo com som original e o segundo um vídeo com som alternativo. Para o estudo em causa foram criados 18 vídeos com som original e 18 com som alternativo.
O segundo passo foi reunir um grupo de pessoas que pudessem avaliar os níveis de agradabilidade dos sons, sons esses que foram escolhidos por serem comumente disruptivos para indivíduos que sofrem de misofonia. Com isto, os investigadores responsáveis pelo estudo procuravam perceber se um som geralmente associado a emoções negativas, poderia deixar de ser um gatilho para os indivíduos com esta síndrome se estivesse associado a outra fonte sonora ou se tivesse outro estímulo visual.
A investigação contou com a colaboração de 102 participantes que desconheciam do objetivo do estudo, de modo a preservarem a sua imparcialidade. A metodologia consistiu em pedir aos participantes que observassem ambos os vídeos, o vídeo com som original e o vídeo com som alternativo, e depois preenchessem um questionário no qual avaliavam a agradabilidade dos dois. Os resultados foram claros e indicaram “um efeito robusto dos estímulos visuais”, como escreve Nicolas Davidenko, um dos autores do estudo, na Psichology Today.
“Os sons foram classificados como significativamente mais agradáveis quando acompanhados pela fonte PAVS (vídeos com som alternativo) em comparação com a fonte OVS (vídeos com som original). Este efeito foi quase universal, manifestando-se em 99 dos 102 participantes”, acrescenta Davidenko. Os participantes pareceram, posto isto, ter reações mens negativas quando um som que geralmente incomoda aparecia associado a uma fonte sonora que não era, de facto, a sua.
Reduzir emoções negativas
O estudo demonstrou que, não apenas o som, mas o estímulo visual que o acompanha, ou seja, o reconhecimento da fonte do som, desempenha um papel importante na reação dos indivíduos que sofrem de misofonia. Como poderia, no entanto, ser esta descoberta utilizada em favor de quem sofre desta condição? “Se a crença de um observador sobre a fonte de um som pode modular a sua reação física e emocional a esse som, pode ser possível que os indivíduos regulem as suas próprias reações imaginando fontes alternativas”. Assim, caso um dado som despertasse uma reação negativa num indivíduo, este poderia procurar, por exemplo, imaginar que esse som provinha de uma fonte diferente, associando, assim, o próprio som a emoções mais agradáveis. Uma pessoa a mastigar, por exemplo, poderia ser um papel a rasgar na imaginação dos indivíduos.
“Suponha que um indivíduo é perturbado pelo som de mastigar. Se eles forem capazes de imaginar o som da mastigar como sendo produzido por uma fonte não-gatilho (por exemplo, alguém a rasgar um pedaço de papel), esse exercício de imagens pode levar a uma resposta emocional e física reduzida ao som, o que, por sua vez, pode permitir que o indivíduo tolere mais facilmente a situação”, explica Davidenko.
Variáveis que influenciam
O grupo de investigadores preocupou-se ainda em considerar possíveis variáveis que pudessem influenciar os resultados obtidos, nomeadamente a ordem de apresentação dos vídeos, se era o vídeo com som original a ser apresentado primeiro ou não. Essa mudança na ordem dos vídeos provou ter, de facto, uma influência nos resultados, sendo que a agradabilidade associada a um som era superior quando o vídeo com som alternativo era apresentado primeiro. “Este efeito de ordem sugere que a crença de um indivíduo sobre a fonte de um som é importante. Quando um indivíduo é exposto ao vídeo original primeiro, reduz a eficácia de ver o vídeo PAVS (vídeo com som alternativo) posteriormente. Este é um detalhe importante, pois pode restringir a eficácia a longo prazo dessa manipulação”, escreve o autor no artigo.
A descoberta e consideração das variáveis vai ao encontro de outros estudos feitos sobre a condição que indicam que o contexto é muito importante em situações nas quais indivíduos com misofonia são perturbados por sons externos. “Um estudo de Marie-Anick Savard e colegas (publicado na mesma edição da Frontiers) mostra que as respostas aos gatilhos misofónicos dependem de o ouvinte identificar corretamente a fonte sonora”, explica Davidenko. É também com base nestes estudos, complementados pela própria investigação em causa, que surge a proposta dos autores para imaginar uma fonte sonora distinta como forma de reduzir os efeitos negativos sentidos pelos pacientes.
Apesar de ser uma síndrome desconhecida ainda por muitas pessoas, a misofonia é cada vez mais o foco de diversos estudos e a procura por um tratamento continua. “Esperamos que, ao partilhar o nosso banco de dados de vídeos com troca de som, outros investigadores usem os estímulos para estudar se a exposição a fontes sonoras alternativas (não desencadeantes) pode resultar em benefícios de longo prazo para aqueles que sofrem de misofonia”, apela Davidenko.