Foi em 2015 que a cantora norte-americana Selena Gomez, agora com 29 anos, falou em público sobre o lúpus, doença autoimune em que o sistema imunitário ataca o organismo em vez de o proteger, provocando inflamações com dor, calor, vermelhidão e inchaço em qualquer parte do corpo, que lhe foi diagnosticada em 2013. “Só queria dizer: ‘Vocês não fazem ideia. Estou a fazer quimioterapia. São uns idiotas.’ Afastei-me da ribalta até me voltar a sentir confiante e confortável outra vez,” contou a também atriz numa entrevista, na altura, à Billboard. Em 2017, Gomez foi ainda submetida a um transplante de rim devido à doença.
O lúpus, que pode ser sistémico e afetar qualquer órgão ou sistema do corpo, ou discoide, uma forma limitada à pele que pode evoluir para sistémico, é mais frequente em mulheres jovens, em idade fértil. “Existem várias explicações para isto, mas a mais unificadora aponta para o ambiente “rico em estrogénios” da mulher jovem como fator fundamental para explicar esse pico de incidência”, explica à VISÃO António Marinho, coordenador do Núcleo das Doenças Autoimunes da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) e médico internista no Hospital de Santo António, no Porto. O médico acrescenta que este grupo apresenta também maior risco de desenvolver doença mais grave.
Com eventos agudos e muito graves desde o início,a doença pode ter várias formas de apresentação, como “fadiga extrema, atingimento da pele e faneras – a clássica asa de borboleta na face, a queda de cabelo e o atraso de crescimento das unhas -, dores articulares inflamatórias e atingimento de órgãos internos, como o rim e o sistema nervoso central”, que são os órgãos mais problemáticos, esclarece o especialista. Também há doentes que apresentam nefrites, inflamações nos rins, e quando o sistema nervoso central é atingido as pessoas podem ter convulsões e até alterações do comportamento. Não é considerada uma doença hereditária e pode surgir em qualquer idade da vida e em ambos os sexos, apesar de atingir mais o sexo feminino.
António Marinho explica que a condição fundamental para o diagnóstico é a presença de anticorpos antinucleares (ANAs), auto-anticorpos que reconhecem e atacam constituintes do próprio corpo e estão presentes em número mais alto que o normal em doenças autoimunes, no soro sanguíneo do doente. “Ao contrário de outras doenças autoimunes, em que se aceita o conceito de seronegatividade (ausência de determinados anticorpos no sangue), no lúpus a presença de anticorpos antinucleares é a condição fundamental para o diagnóstico”, esclarece o médico.
De acordo com um documento realizado pela SPMI sobre a doença, em alguns casos “o diagnóstico é difícil de obter porque, apesar de se suspeitar fortemente de lúpus, os dados clínicos nesse momento não são suficientes para fazer um diagnóstico”. Nestes casos, lê-se no documento, “só o desenrolar da situação clínica é que confirmará a presença da doença”. Os testes laboratoriais não são suficientes para realizar um diagnóstico, mas são muito úteis em conjunto com os sintomas referidos pelo doente e os sinais observados pelo médico.
Medo e ansiedade
Ao longo dos anos, o cenário em relação a esta doença tem-se tornado mais positivo, principalmente devido à utilização generalizada da hidroxicloroquina, “fármaco fundamental para o controlo adequado da doença” refere António Marinho, acrescentando que este medicamento “melhora a qualidade de vida e aumenta a sobrevida”.
Ainda assim, o médico garante que “continua a existir um estigma forte em relação à doença na mulher jovem, o medo de não poder engravidar e uma esperança de vida mais reduzida”. De facto, para a maioria das pessoas o lúpus provoca níveis muito elevados de ansiedade, diz António Marinho, e a fadiga extrema, que nem sempre se relaciona com a gravidade da doença, “continua a ser um problema difícil de resolver”. “Efetivamente, a fadiga e os danos provocados pelas formas graves de doença são as principais causadoras de um impacto negativo a nível físico e emocional” da doença, esclarece o especialista.
António Marinho defende ainda que continua a haver a noção de que os doentes com lúpus são significativamente mais limitados fisicamente, pelo que ficam para trás nas escolhas laborais. Além disso, “mesmo nas fases mais graves da doença não há uma compreensão em relação à fadiga do doente e não existe a cultura de se adaptarem transitoriamente as horas de trabalho ou permitir descansos e baixas quando necessário”, afirma o médico. “No século XXI, os doentes ainda são prejudicados por terem uma doença crónica com potencial invalidante”, acrescenta.
Tratamentos que melhoram a qualidade de vida
Apesar de o lúpus não ter cura, a esperança aumentou muito nos últimos anos, mas “nenhum tratamento substitui a toma de hidroxicloroquina como medicamento âncora para o controlo da doença”, garante Marinho. A cortisona continua a ser usada em doses muito baixas e pode também associar-se ainda imunossupressores convencionais e biológicos, (medicamentos que enfraquecem o sistema imune, diminuindo o seu funcionamento e, por isso, a resposta inflamatória auto-imune própria da doença. São utilizados apenas em algumas formas graves de lúpus porque podem provocar efeitos secundários graves).
Os fármacos biológicos são utilizados para tratar formas de doença que permanecem em atividade sob doses grandes de hidroxicloroquina, podendo ser usados antes ou depois dos imunossupressores convencionais. Os dois fármacos aprovados para o lúpus, belimumab e anafrilumab, foram os únicos a obter aprovação para a doença nos últimos 50 anos. “Esses biotecnológicos são anticorpos monoclonais com o intuito de bloquear mediadores inflamatórios ou fatores de sobrevivência dos linfócitos autoreativos”, explica o médico.
Controlar a doença de forma mais eficaz pode permitir reduzir ou suspender a cortisona e melhorar a qualidade de vida e, havendo a “disponibilidade de serem utilizadas injeções subcutâneas, estas podem ser efetuadas em casa após ser feita a aprendizagem com o apoio da equipa de enfermagem”, esclare ainda o especialista.