A História da Medicina regista que, há mais de 200 anos, o instituto inglês York Retreat foi pioneiro na introdução da terapia animal como coadjuvante no tratamento dos distúrbios mentais dos seus doentes. Damos agora um enorme salto no tempo, até ao século XXI, para entrarmos, por assim dizer, no consultório do psiquiatra Jorge Mota Pereira, no Porto. Com frequência, nas consultas, doentes que viviam sozinhos confessavam ao médico que “só não faziam uma asneira porque tinham em casa um cão ou um gato, que depois ficavam sem ninguém que tratasse deles”, conta o especialista.
Aquelas confidências, admite o clínico, foram o ponto de ignição para que Jorge Mota Pereira e a médica radioncologista Daniela Fonte se abalançassem, em 2017, a um estudo científico que procurou apurar o outro lado da moeda – ou seja, se era possível estabelecer uma relação direta entre a adoção de animais de estimação por doentes depressivos e melhoras substanciais nos sintomas da patologia. Isto sem reforço da medicação ou utilização de estratégias de psicoterapia.
E, com o seu inovador estudo, os dois médicos conseguiram mesmo comprovar cientificamente a existência daquela relação direta, com a pesquisa a ter impacto além-fronteiras, a ponto de ser publicada, em setembro de 2018, no importante Journal of Psychiatric Research. Agora, em declarações à VISÃO, o psiquiatra Jorge Mota Pereira admite, até, que em casos nos quais produz significativos efeitos de remissão da doença, a terapia animal pode ser tida, por si só, como um tratamento da depressão. “Muitos pacientes melhoraram imenso e até deixaram a medicação após a adoção de um animal de estimação”, diz o especialista. Mas ressalva que a monitorização clínica é crucial, para que aqueles pacientes não abandonem a medicação “sem ser oportuno”.
Os critérios, o modus faciendi e os resultados do estudo de Mota Pereira e Daniela Fonte são elucidativos sobre os benefícios da terapia animal como coadjuvante no tratamento da depressão. O recrutamento de pacientes para a pesquisa apenas incidiu sobre doentes com depressão severa e resistente ao tratamento, mas que estivessem a tomar pelo menos dois fármacos. E não podiam ter um animal de companhia.
Sem saberem o fim a que se destinava o estudo (foi, pois, um “teste cego”), a pesquisa iniciou-se com 33 doentes que aceitaram a sugestão de adotar um animal de estimação e outros 33 pacientes que a recusaram, constituindo estes o grupo de controlo. O estudo terminaria com 30 doentes de cada lado, porque seis pacientes faltaram à segunda consulta de acompanhamento (à 8.ª semana – a primeira foi à 4.ª e a última à 12.ª semana, o período em que a pesquisa decorreu).
“A minha perceção é a de que o cão é o animal mais antidepressivo de todos”, diz Mota Pereira
Além da patologia, os dois grupos eram iguais na distribuição de géneros (ambos constituídos por 22 mulheres e oito homens), mas tinham ligeiras diferenças na média de idades: 50 anos no dos que aceitaram adotar um animal de estimação, e 52 anos no dos que recusaram a sugestão.
O impacto internacional do estudo deveu-se a um resultado que surpreendeu os próprios autores da pesquisa – 36,3% dos pacientes depressivos que adotaram animais de estimação (quase na totalidade cães; apenas sete optaram por um gato) demonstraram remissão da doença, passando de sintomas severos a ligeiros. Já no grupo de controlo, tudo permaneceu clinicamente na mesma.
Libertação de bem-estar
No estudo de Mota Pereira e Daniela Fonte resultam evidentes as mais-valias da adoção de um animal de estimação para um doente depressivo. Esses benefícios vão desde a responsabilidade de cuidar de um animal (contrariando o obstáculo psicológico de que “não consegue fazer nada”) até aos fortes laços afetivos criados pela brincadeira e pelos mimos, passando, no caso dos cães, pela ida à rua, para os necessários passeios, o que implica exercício físico e interação com donos de outros canídeos.
Mas o que ocorre, exatamente, na mente de um paciente depressivo em que a terapia animal produz efeitos de remissão da doença? “Há alterações a nível dos neurotransmissores cerebrais – serotonina, noradrenalina e dopamina -, que estão associados ao bem-estar e à melhoria do humor”, responde Mota Pereira. Inversamente, acontece uma diminuição acentuada, ou mesmo a eliminação, da anedonia, que traduz a incapacidade de ter prazer.
“A minha perceção é a de que o cão é o animal mais antidepressivo de todos”, diz Mota Pereira, embora tenha doentes que o surpreendem, na escolha de animais de companhia, com peixes, aves, tartarugas ou porquinhos da Índia. Seja como for, e fiel à principal conclusão do estudo científico de que foi coautor com Daniela Fonte, o psiquiatra continua a apostar na eficácia da terapia animal e a sugeri-la como tratamento aos seus doentes com indicação para o efeito. “A adesão é boa”, diz.