Aos dois anos e meio, Henrique Neves e o irmão, António, foram separados. A mãe ficou viúva quando tinham apenas três meses e “as dificuldades da vida”, como descreve Henrique, obrigaram a que este deixasse Santa Comba Dão e ficasse a cargo dos avós paternos. Todos os meses, a mãe ia, com o irmão, até Tondela, para o visitar apenas por umas horas. “Brincávamos muito e dávamos umas lambadas um no outro quando nos chateávamos”, recorda Henrique, lamentando que nessa altura não houvesse uma ligação muito próxima. Haviam nascido os dois numa sexta-feira, 12 de março de 1937, mas cresceram longe um do outro. Só se reencontraram em Moçambique, quando tinham 20 anos. Henrique, por carta, pediu ao irmão que se juntasse a ele no negócio de comércio. António não hesitou e foi. Desde aí até hoje, com 83 anos, nunca mais se largaram: regressaram a Portugal em 1974, dedicaram-se a criar aviários e abriram um supermercado, em 1983. Pelo meio, construíram as casas juntas, porta com porta, e até partilham o pátio. Passam todos os dias juntos.
Desde pequenos que são praticamente iguais. Para os que não os conhecem, são indistinguíveis. Quando Henrique vivia em Moçambique queria legalizar-se, tendo para isso de vir a Portugal, mas as semelhanças com António dispensaram-lhe a viagem. “Ele fez-se passar por mim, mandou-me os documentos e fiquei legalizado. Assim já não tive de vir tratar disso”, lembra.
São gémeos monozigóticos, tradicionalmente conhecidos como “verdadeiros”. Estes surgem de uma gravidez que resulta sempre de um único óvulo fertilizado por um espermatozoide. Mas no processo de formação do embrião, algumas células separam-se e dão origem a dois embriões, explica Fernando Cirurgião, diretor do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.
Esta situação inesperada pode acontecer a qualquer pessoa, uma vez que “é aleatória”, garante Cláudia Ribeiro, investigadora do Instituto de Saúde Pública, da Universidade do Porto, que está a realizar um estudo com gémeos, acrescentando que a genética não interfere nesta possibilidade de as células iniciais se dividirem e darem origem a dois embriões.
Por isso, existirem na mesma família gerações diferentes de gémeos monozigóticos pode ser apenas coincidência. “Não parece haver nada muito concreto sobre a hereditariedade de gravidezes destes gémeos. Uma gravidez gemeral anterior numa família não tem grande influência na possibilidade de vir a haver outra”, explica refere Fernando Cirurgião.
“Sinto o que ela sente”
Certo é que estes gémeos originados de um só ovo têm algo especial: tendencialmente vão partilhar 100% do material genético, conta Ana Berta Sousa, do Serviço de Genética do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, notando que esta situação explica as grandes semelhanças físicas.
As parecenças são tantas que, quando Maria do Mar e Maria Manuel nasceram há 39 anos, nem os pais as distinguiam. Em bebés, durante os primeiros meses, os pais até tiveram de colocar uma fitinha no pulso de uma delas para as diferenciar. “Lembro-me que em pequenas até trocávamos os bibes com os nomes e na escola não nos reconheciam”, recorda Maria do Mar.
Apesar de, nos chamados gémeos verdadeiros, o mais comum ser partilharem feições quase idênticas, a especialista em Genética diz que “isso não significa que sejam rigorosamente iguais”. “A expectativa é de que sejam, mas hoje sabe-se que não é necessariamente assim”, refere, explicando que uma das justificações está “em possíveis alterações poszigóticas“ nos genes: “Durante o desenvolvimento embrionário pode haver a introdução de mutações ou alterações genéticas, de forma acidental, que os vão tornar diferentes.”
Habituadas a crescer sempre ao lado uma da outra, as gémeas acreditam ter uma ligação fora do comum. “Temos uma cumplicidade que não vejo tanto nos irmãos normais”, conta Maria do Mar, recordando-se de situações concretas: “Das duas vezes em que a minha irmã foi operada, eu senti.” A primeira, há mais anos, sucedeu quando fez uma cirurgia ao apêndice; a segunda, mais recentemente, aconteceu quando Maria Manuel teve um filho. “Quando ela estava para ter o bebé, eu ligava-lhe porque sabia que ela ia ter outra contração. E tinha mesmo”, recorda Maria do Mar, garantindo: “Eu acho que tenho mesmo essa coisa de sentir o que o outro sente.”
A resposta a esta intrigante pergunta – os gémeos sentem o mesmo? – não é, porém, uma situação ainda totalmente provada pela Ciência. “Não temos evidência cientifica para responder linearmente ”, diz Filipe Palavra, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia, explicando: “Se partilharem dos mesmos genes e expressarem os mesmos recetores na mesma zona do cérebro, perante um determinado estímulo e num determinado contexto, podem ter sentimentos semelhantes.” O neurologista acredita que é por “aqui que se pode explicar esse conceito” de que os gémeos sentem o que o outro está a sentir.
“Partilharam a mesma vida uterina, as mesmas etapas de desenvolvi-mento ao mesmo tempo. Há uma ligação mais forte e uma relação especial”, diz David Neto, da Ordem dos Psicólogos
David Neto, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos e professor no ISPA-Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida acrescenta outros dados para explicar estas situações . “Os gémeos partilharam a mesma vida uterina, as mesmas etapas de desenvolvimento ao mesmo tempo. Há uma ligação mais forte e uma relação especial”, diz, avisando: “Não tem nada de parapsicológico.” Os dados que existem, conclui, não permitem “pensar que há uma ligação metafísica entre gémeos”.
Aliás, apesar de, em regra, partilharem o mesmo ADN, uma das diferenças que têm é o cérebro. “Gémeos iguais, que partilham o mesmo genótipo, em condições normais, deveriam ter uma estrutura cerebral igual, pois os genes que codificam as proteínas são os mesmos”, nota Filipe Palavra, adiantando que, porém, “não é isso que acontece”. Segundo o especialista, “estruturalmente os cérebros não são necessariamente iguais”. Já quanto ao modo como funcionam e se o fazem de forma idêntica não se sabe ainda: “Há muito por identificar”, admite o investigador da Universidade de Medicina de Coimbra, que está a recorrer a várias famílias, incluindo algumas com irmãos gémeos, para estudar a esclerose múltipla, uma doença neurodegenerativa. “Sabemos dos estudos com gémeos, que se um tiver, o outro terá só cerca de 30% de probabilidade de vir a ter esta doença”, diz o especialista, sublinhando que os restantes 70% são determinados por fatores ambientais.
Doenças iguais?
Os gémeos têm sido em muitos estudos a chave para perceber a influência que a genética e o ambiente exterior, como o estilo de vida, entre outros, têm em certas doenças. É esse o objetivo do projeto que está a ser desenvolvido por Cláudia Ribeiro, no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
As parecenças e a partilha dos genes costumam levantar uma questão: os gémeos vão desenvolver as mesmas doenças, tendo riscos iguais? Depende da doença e do tipo de gémeos, dizem os especialistas.
“Numa doença dita puramente genética, os gémeos monozigóticos são ambos afetados, pois aí é a genética que comanda”, sublinha Ana Berta Sousa, dando como exemplo a trissomia 21. Mas, nota, “mesmo neste caso, a gravidade das manifestações não é necessariamente igual”.
No entanto, acrescenta, “há doenças genéticas em que a influência de outros fatores, como os ambientais e comportamentais, mas também a sorte e o azar, têm um papel importante”. Por isso, frisa, “nem sempre uma determinada alteração genética vai corresponder a manifestação da doença”, resume Ana Berta Sousa, notando que é o que se passa com a maioria das síndromes de cancro hereditário. “Dois gémeos com a mesma mutação num gene associado a uma destas situações vão ter ambos um risco elevado de cancro, mas um pode ter e o outro não, ou podem ter cancros diferentes dentro do espectro de suscetibilidade, ou ainda ter cancro em idades distintas.”
Se Henrique e António Neves, e Maria do Mar e Maria Manuel partilham assim alguns riscos, já Beatriz e Clara Castro, de 18 anos, correm perigos independentes, apesar de também serem gémeas. A explicação é simples: são gémeas dizigóticas, ou seja, “falsas”. Partilham apenas 50% do seu material genético, porque, como explica Fernando Cirurgião, nasceram de dois óvulos fecundados por dois espermatozoides diferentes. Segundo Cláudia Ribeiro, a maior parte deste tipo de gémeos resulta de gravidezes feitas através de tratamentos de fertilização. No entanto, admite, em algumas situações, pode resultar de características específicas da mãe. “Se a uma mulher tiver passado por hiperovulação – ovular mais do que é comum –, a probabilidade de ser fertilizado mais do que um óvulo é maior.”
Apesar de serem um tipo de gémeas falsas, Clara e Beatriz são muito parecidas. De tal forma que esta última decidiu começar a cortar o cabelo mais curto porque, além de gostar, seria mais fácil de as distinguir. Ao mesmo tempo, garantem que também sentem o que a outra está a sentir, à distância.
Beatriz recorda-se de um episódio que explica a ligação que as une: “Quando éramos bebés, eu parti o braço e fui para o hospital, enquanto a minha irmã ficou com o meu pai, em casa, e ela começou a ficar um pouco adoentada”, conta, acrescentando que assim que regressou do hospital, a irmã melhorou logo.
“Dois gémeos com a mesma alteração no gene associado a uma doença vão ter os dois um risco muito elevado, mas um pode ter e o outro não, pois depende de fatores ambientais, comportamentais, da sorte e do azar”, diz a especialista em Genética Ana Berta Sousa
Também Rogério e Carla Ferreira, de 41 anos, um casal de gémeos falsos, sentem esta conexão. “Temos pressentimentos relativamente um ao outro”, confessa Carla, enquanto o irmão aproveita para lembrar que no dia em que a irmã anunciou que estava grávida, ele também soube que ia ser pai.
“Os gémeos estão emocionalmente muito ligados”, nota Filipe Palavra, explicando que “há um conjunto de laços reforçados que, perante um problema, podem resultar numa resposta semelhante”.
Bruno e Bernardo Fontoura, 33 anos, também gémeos “falsos” que trabalham juntos, já passaram por várias histórias destas, intrigantes. “Às vezes, chego ao trabalho a cantar uma música e o meu irmão aparece a cantá-la também”, recorda Bruno. Os dois partilham gostos pela praia, desportos radicais, organização de eventos e comunicação. Por isso, formaram uma empresa juntos – a The Rainbow. “Se não fosse isso, talvez tivéssemos hoje duas realidades completamente distintas”, admite Bernardo. David Neto considera que é comum que gémeos tenham gostos semelhantes por partilharem o mesmo ambiente de desenvolvimento, começando logo no útero. “Existe uma parte genética que determina muitos aspetos da personalidade, como o temperamento e os gostos”, afirma o especialista, sublinhando que é, no entanto, natural que traços mais complexos, como os valores de cada um, sejam diferentes, consoante o que vão experienciando ao longo da vida.
Os trigémios
Diogo, Rui e Bruna são trigémeos. Aos 20 anos, esperam seguir o mesmo ramo profissional: a carreira militar. Já ela prefere a área administrativa.
A mãe, Cláudia Moleiro, 42 anos, soube que estava grávida de trigémeos às dez semanas. “Disse ao médico para tirar dois, porque só queria um”, recorda. “De Lisboa a casa, eu e o meu marido não abrimos a boca. Foi um choque tão grande”, diz. Nasceram com 31 semanas, todos com um peso entre um quilo e 100 e as 500 gramas. Ficaram um mês na neonatalogia. Fernando Cirurgião diz que este é um dos riscos das gravidezes de gémeos. “Pode haver atrasos de crescimento por haver uma distribuição assimétrica do alimento”, admite o especialista, garantindo que é mais comum em gravidezes de gémeos verdadeiros. “A parte mais preocupante são os casos em que os dois estão no mesmo saco e partilham o mesmo espaço, porque os cordões umbilicais podem enrolar-se entre eles”, descreve, acrescentando que, por esses riscos, ter gémeos, felizmente, não é assim tão comum. Segundo o especialista, de todas as gravidezes, apenas 3% são gemelares.
Cláudia garante que os três filhos são muito diferentes. Diogo sempre teve uma personalidade mais forte, enquanto Bruna e Rui são mais calmos. Todos partilham o gosto pela natureza e pelo escutismo, mas são os rapazes que, inevitavelmente, partilham mais interesses. “Estão sempre juntos”, relata Bruna. Tudo o que um gosta, o outro também, ao ponto de cada um ter o seu carro, mas exatamente iguais. Diogo recorda-se dos tempos em que a mãe os tentava vestir de igual, mas nunca acharam piada.
“Os pais, às vezes, tendem a acentuar as semelhanças ao vesti-los da mesma forma, tratá-los da mesma forma, metê-los na mesma escola. E isso, por vezes, pode ser problemático”, alerta David Neto, salientando ser “importante respeitar as diferenças que vão emergindo”.
É que nem sempre é fácil viver, tendo alguém igual. “Andámos sempre na mesma escola, e só nos separámos quando escolhemos universidades diferentes. E aí notei que falava muito no plural. Tinha perdido um bocadinho a minha identidade”, assume Maria do Mar, que frequentou o curso de Comunicação Empresarial, em Lisboa. A irmã optou por Gestão Hoteleira, no Estoril. “Até então vivemos exatamente as mesmas coisas, éramos um conjunto”, afirma Maria Manuel.
Sofrem hoje as duas do mesmo mal: não sabem estar sozinhas. “Não sou capaz de almoçar ou ir ao cinema sem ninguém, porque até aos 18 anos não tive de fazer nada sozinha”, diz.
Também Carla Ferreira garante sofrer dessa “síndrome de não conseguir estar sozinha”. Esteve até ao 10º ano na escola e na turma do seu gémeo, Rogério. Almoçavam e passavam os intervalos sempre os dois, mesmo quando mudaram de turmas. Tiraram juntos o curso de inglês e francês e também frequentaram aulas música e de ginástica. Mas nunca se isolaram num mundo à parte.
Já Beatriz e Clara admitem que “ás vezes ser gémeo é um obstáculo à sociabilidade”. Por isso, desde pequenas, nunca tiveram necessidade de procurar companheiros de brincadeira: “Tínhamo-nos uma à outra, não precisávamos de mais nada.” Vão as duas concorrer para a universidade este ano e esperam separar-se para serem mais “individuais”. “Passamos tanto tempo juntas que tendemos a confundirmo-nos”, admite Beatriz.
Também Bruno e Bernardo Fontoura são inseparáveis. “Nós fizemos praticamente a nossa vida profissional e pessoal juntos”, refere Bernardo, tanto que hoje até são conhecidos como os “gémeos Fontoura”. Do tempo da universidade somam episódios surpreendentes. Os professores chegaram a dar-lhes as mesmas notas por não saberem distinguir qual deles estava presente na aula.
Rogério e Carla também falam todos os dias e almoçam uma vez por semana. Já Maria do Mar e Maria Manuel moram no mesmo prédio e conversam ao telemóvel “umas dez vezes por dia”. “Para nós é ótimo, para os nossos filhos também, para os nossos maridos é péssimo, porque todos os dias têm de levar com os filhos da outra ou com a irmã”, brinca Maria Manuel.
Já Henrique e António Neves, trabalham juntos desde 1959, ou seja, há 61 anos. Reformados desde 2004 estão juntos tempo sem fim. As respetivas mulheres até têm ciúmes. Não há dia em que não estejam horas a conversar no pátio ou entretidos no quintal. Ao final do dia têm até um ritual: um passeio pela avenida de Tondela, que há anos e anos é cumprido pelos “gémeos unidos” – como são conhecidos.