Ouvir sonoridades que são reais apenas na cabeça de quem as tem é um desafio para investigadores, médicos e pacientes e, contrariamente ao que se pensa, não são um sinal de loucura.
“Eu nasci para a música”, cantava José Cid. Não consta que seja um problema, pelo contrário. Fruto da imaginação e da criatividade inerentes à condição humana, é difícil conceber a sua ausência nas nossas vidas, por enriquecê-las e ter até qualidades terapêuticas, comprovadas pela Ciência, na recuperação de várias doenças. E se ela se instalar no cérebro sem ser solicitada e criar desconforto, confusão e sentimentos de impotência, ensombrando o quotidiano?
Quando o professor de Neurologia da Universidade de Columbia Oliver Sacks publicou Musicofilia (editora Relógio d’Água), em que explorava as condições fisiológicas e mentais e as suas ligações à música, a obra foi considerada uma das melhores de 2007 pelo jornal The Washington Post.
Nas inúmeras palestras que circulam no YouTube, com milhares – milhões, em alguns casos – de visualizações, o conceituado médico e investigador despertou a atenção para um tema pouco conhecido: o das alucinações musicais. Foram muitos os que, após lerem o livro, lhe escreveram a partilhar as suas experiências. Embora nem todas fossem desagradáveis, uma parte significativa causava transtorno, dada a repetição incessante de músicas no cérebro: alguns descreveram o processo “como um rádio que só tem o botão de ligar”, outros apelidaram-no de “jukebox intracranial”.
Companheiros improváveis
Ouvimos com os ouvidos, mas também com o cérebro. “A música interna é o sinal mais evidente da sensibilidade esmagadora dos nossos cérebros à música”, salientou o afirmou, mas em certas circunstâncias “pode ter uma qualidade patológica, perder a beleza e ficar num loop”.
Tais experiências surgem repentinamente, expandem-se e são intrusivas, sem que os visados as possam parar ou inibir. No entanto, havia quem fosse capaz de usar manobras distrativas e mudá-las para outra canção do repertório, desde que tivessem semelhanças de ritmo, melodia ou tema. Estas alucinações faziam-se acompanhar de uma hiperatividade nas redes musicais do cérebro e por vezes eram reduzidas com medicação para a epilepsia.
Após uma análise da correspondência recebida, o neurologista descobriu que as alucinações musicais “podiam começar em qualquer idade e durar a vida inteira”. Ou seja, foram desenvolvidas por 2% dos duros de ouvido, um quinto dos relatos eram de pessoas com idades avançadas sem perdas auditivas assinaláveis e era possível acontecerem em crianças, como Michael, B., de 7 anos, que “ao viajar de carro, às vezes gritava, cobria os ouvidos e pedia que desligassem o rádio, apesar de este não estar ligado”. Foi preciso tomar medicação para reduzir a excitabilidade cortical.
Consumidos por vermes cerebrais
Todos nós já passámos por isso: querer tirar uma música irritante da cabeça, por vezes associada a um anúncio publicitário ou a um genérico de que nem gostamos. Já no século XIX, o filósofo e psicólogo norte-americano William James tinha notado a “suscetibilidade à música” e a capacidade de interferir nos estados emocionais. À repetição obsessiva do mesmo material musical durante dias a fio foi dada a designação de vermes cerebrais.
O próprio Sacks admitiu não ser imune a eles, encarando-os como melodias infeciosas, dado o seu potencial contagiante: “Os meus brainworms mais antigos conseguem ser reativados só de pensar neles.” As suas “reposições mentais” duravam dez a quinze minutos, dos 3º e 4º concertos para piano de Beethoven, na versão gravada por Leon Fleisher nos anos 60.
“Chegam duas a três vezes por dia e, embora não venham a pedido, são sempre bem-vindas.” Mas nem sempre era assim: “Numa noite de insónia, por exemplo, cheguei a ser invadido por um trecho rápido de dez a quinze segundos que se repetia centenas de vezes”, pode ler-se no livro.
Embora o termo earworm tenha sido usado pela primeira vez nos anos 1980, o fenómeno foi estudado seis décadas antes pelo compositor e musicólogo Nicolas Slonimsky: ele dedicava-se a inventar frases musicais capazes de colonizar a mente, impondo-lhe a imitação e a repetição. Estávamos ainda longe da omnipresença do som a entranhar-se nos nossos circuitos neuronais e do ruído urbano que aumenta a vulnerabilidade, as perdas auditivas e abre a porta às sonoridades ouvidas cá dentro.
Cantando com o inimigo (e sem medo)
Na comunidade científica estima-se que cerca de 10% das pessoas com perdas auditivas tenham alucinações musicais. Em parte, tal explica-se pelo facto de o cérebro deixar progressivamente de receber estímulos sensoriais e ficar hiperativo e excitável. A experiência auditiva é real e mimetiza a perceção e quem se vê neste filme não o refere aos médicos por medo de passar por louco. Talvez um dos casos mais paradigmáticos descritos por Oliver Sacks seja o de Tony Cicoria, um cirurgião e antigo jogador de basebol que, aos 42 anos, foi atingido por um raio e passou por uma situação de quase morte. Voltou à vida normal, mas a cada dois ou três dias, era surpreendido por uma necessidade insaciável de ouvir música para piano, sem que tivesse quaisquer conhecimentos de notação musical. Encomendou partituras, começou a aprender e admirou-se quando a música o visitou num sonho: “Estava de smoking em cima de um palco a tocar algo composto por mim e acordei sobressaltado.” Daí em diante, levantava-se de madrugada, tocava antes de ir trabalhar e passava o serão ao piano. “Estava possesso.” A “inspiração”, como lhe chamava, fez dele uma pessoa “muito espiritual”.
Divorciou-se, teve um acidente na Harley, abalroada por outro veículo, mas o homem recuperou totalmente dos ferimentos na cabeça e, dois meses depois, retomou o trabalho clínico e a sua paixão, deixando o neurologista pasmado: “Nunca encontrei nenhum caso igual ao de Tony.”
Como se explicam histórias assim? A chave parece estar na “hiperligação sensorial-límbica que gera o aparecimento súbito de sentimentos artísticos, sexuais, místicos ou religiosos em algumas pessoas com epilepsia do lobo frontal”. A literatura científica envolvendo o estudo de pacientes com perturbação convulsiva revelou que a cirurgia cerebral pode, em alguns casos, eliminar os ataques espontâneos e a vulnerabilidade específica às alucinações musicais. Porém, o fenómeno alucinatório é um território vasto e complexo que toca áreas tão diversas como o envelhecimento, algumas perturbações mentais, efeitos secundários de drogas psicoativas e lesões neurológicas.
Música no lugar da perda
“A alucinose musical não tem sido muito explorada na literatura científica”, afirma a psiquiatra Catarina Klut, que publicou um trabalho sobre o assunto na revista PsiLogos, em 2011, partindo do acompanhamento de um caso clínico com diagnóstico de esquizofrenia, no Hospital Fernando da Fonseca, no primeiro ano do internato em Psiquiatria. Embora a prevalência estimada das alucinações musicais seja de 0,16% num hospital geral, sobe para 2,5% em idosos com défice auditivo, ou hipoacúsia, e chega a ser de 20% em doentes com perturbações mentais.
O paciente analisado, que foi músico profissional, tinha 44 anos e há cinco apresentava alterações do comportamento, ideias delirantes que o levaram ao internamento. Foi diagnosticado com esquizofrenia e apurou-se a presença de “alucinações musicais envolvendo sons de harpa, num repertório de três a quatro melodias distintas, que desconhecia”. As audiometrias revelaram surdez e a prescrição de medicação apenas trouxe uma melhoria parcial do quadro clínico. Ficou por saber o que se passou entretanto já que, após ter alta, o paciente abandonou o seguimento em consulta.
“A alucinose musical não tem sido muito explorada na literatura científica” afirma a psiquiatra Catarina Klut, que publicou um trabalho sobre o assunto na revista PsiLogos
Catarina Klut reconhece que “as alucinações musicais são raras e têm geralmente por base um défice sensorial”. No seu percurso profissional acompanhou outro paciente do sexo masculino com características semelhantes, incluindo o contacto prévio com a música. “Nestes dois doentes a alucinação foi integrada no delírio, o que contrasta com situações em que não há patologia mental”, acrescenta a médica. Regra geral, “as pessoas dão-se conta da irrealidade da experiência, que toma o lugar do silêncio devido à perda sensorial”.
Neurónios desalinhados
Carlos Calado, neurocirurgião do Hospital de São José e do Hospital CUF Santarém, também já tomou contacto com as alucinações musicais. Na sua prática clínica sinalizou três doentes, um deles já falecido: “Tinha um tumor maligno temporal e fez três cirurgias, mas as alucinações, que eram desagradáveis, aumentavam à medida que o tumor avançava.” Com o lobo temporal direito afetado, “onde estão parte das memórias auditivas”, o fenómeno era semelhante ao déjà-vu de algumas formas de epilepsia. “É difícil lidar bem com esta interferência, até por comprometer o sono”, afirma o médico. Um caso diferente foi o da mulher com 60 anos e um tumor na hipófise: tinha a síndrome do ouvido musical – ou vermes auditivos – e era invadida por canções de Amália Rodrigues e José Cid. “Vivia no campo e queria descansar mas não conseguia, ‘aquele lavarinto não para’ dizia ela; penso que tivesse uma epilepsia não demonstrada, pois melhorou com a medicação antiepilética”. Por fim, uma mulher com 95 anos, que deu entrada na Urgência de São José com um problema de coluna e suspeita de AVC, que veio a confirmar-se. Com a pandemia, não voltou a ter consulta.
Há sete anos, no simpósio internacional Música, Poesia e Cérebro, em Lisboa, por ocasião do bicentenário de Richard Wagner, Carlos Calado foi o primeiro autor do poster Sick Neurons, Bad Music – The Musical Syndromes, onde se estabelece a relação entre lesões no cérebro e disfunções associadas: as musicais ocupam um lugar de destaque, ao lado da epilepsia musicogénica e do lobo temporal, da síndrome do ouvido musical, das alucinações auditivas e dos automatismos musicais.
Uma grande família afinal, cujos membros partilham o aumento da atividade musical involuntária dentro da cabeça.
Resistir não, integrar sim
O que fazer quando não se suporta viver com o sintoma? A terapia cognitiva e comportamental tem evidenciado alguns resultados na redução do desconforto, quer quando os fármacos não se mostram eficazes, quer quando não existe indicação para prescrevê-los. A hipnose clínica (hipnoterapia) apresenta-se também como uma opção, na “manipulação do sintoma”, pois permite alterar a perceção do mal-estar que provoca o sofrimento, particularmente em pacientes com alucinações auditivas simples, como o zumbido, ruído semelhante a um toque de campainha, buzina ou assobio. A hipnoterapeuta Rosário Vilardebó acompanhou pessoas com este problema e explica como o aborda em sessão: “Através de sugestão dada no estado hipnótico, a pessoa é convidada a imaginar que no interior da sala do controlo da sua mente – onde encontra painéis de controlo de todas as funções do seu corpo – consegue reduzir a intensidade do sintoma ou juntar uma melodia conhecida que toca ao ritmo do zumbido.” Uma vez aprendida a técnica e, com a prática, “a pessoa acaba por sentir que tem algum controlo sobre o sintoma, facilitando a sua integração na vida diária”.
Voltando ao livro de Oliver
Sacks, é incontornável a menção ao psicanalista Leo Rangell, que estudou as alucinações musicais em si próprio, tinha uma idade avançada, défice auditivo e fizera um bypass, na sequência do qual deparou com a música interna (com canções da juventude) e aprendeu a viver com ela. Com o tempo, percebeu que refletia os seus humores e circunstâncias e se tornava plena de sentido: “Às vezes, quando a música parava, dava por mim a cantarolar a melodia que momentos antes desejara que parasse. Percebi que lhe sentia a falta.” Cada sintoma esconde um desejo, sabia-o bem, “desejos românticos, sexuais, morais, agressivos, impulsos de ação e domínio”, que davam forma final às suas alucinações.
“Por muito que me queixe, e pelo menos em parte”, confessou ao neurologista, “a canção é bem-vinda”.
Quando o cérebro toca
Músicos e escritores famosos que conviveram de perto com as alucinações musicais
Mark Twain
O escritor norte-americano escreveu, em 1882, o conto Literary Nightmare, sobre uma “rima” irritante que se alojou como um parasita na mente do autor, que não teve outro remédio senão arranjar maneira de passar a maldição para outra vítima.
Robert Schuman
O compositor alemão sofria de esquizofrenia e tinha alucinações auditivas. A música “angelical” que ouvia tornou-se “demoníaca” e em fim de vida tornou-se “terrível”, por ficar refém da nota Lá, incessante e insuportavelmente intensa.
Pyotr Ilyich Tchaikovsky
O compositor russo tinha um carácter depressivo. Em criança, acordava a chorar, pedindo que o salvassem da música que tinha na cabeça. Sofria de alucinações musicais quando estava a compor a sinfonia Sonhos de Inverno.