Quem nunca mentiu? Quem nunca inventou uma história inofensiva para se proteger ou proteger os outros? Pergunta a psiquiatra Manuela Matos, do Hospital CUF Coimbra, garantindo que “a mentira é inata no ser humano e um comportamento normal na vida em sociedade”. Em muitas ocasiões, diz, por seu lado, Zulmira Correia, diretora do Serviço de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar Universitário do Porto, “a mentira usa-se como ferramenta para não magoar alguém, para evitar uma situação social desagradável ou mesmo para ser educado”. Por isso, o problema não é mentir uma ou outra vez, mas sim quando a mentira se torna frequente. Veja o que explicam as especialistas sobre a mitomania – um transtorno em que se mente compulsivamente.
Como identificar
A forma como os mitómanos contam as mentiras pode ser um sinal de alerta para quem os rodeia: na maioria das vezes, são os heróis ou as vítimas da história
1 – O que é?
Também conhecida como mentira patológica ou pseudologia fantástica, a mitomania caracteriza-se, explica Zulmira Correia, “por uma tendência para mentir compulsivamente, de forma consciente e reiterada, sem um propósito óbvio”. Ou seja, “o mitómano mente sobre o mais mínimo aspeto da sua vida, com a mais absoluta naturalidade”. Manuela Matos resume: “É um estado consciente de fabulação.” Aliás, nota a médica, o doente sabe que as histórias “são irreais, mas vivencia-as quase como verdadeiras”. Um comportamento, sublinham as especialistas, que se torna central na vida da pessoa, com impacto nas relações familiares, sociais, profissionais e financeiras. “O mentiroso compulsivo tem de fazer um grande esforço para sustentar a ‘teia de mentiras’”, refere Zulmira Correia. Além disso, conclui Manuela Matos, “as mentiras podem originar sofrimento ao próprio e aos que o rodeiam”.
2 – Quais as causas?
Apesar de não estarem completamente esclarecidas, sabe-se “que podem ter algum componente hereditário e que estão de mãos dadas com fatores de ordem psicossocial”, diz a psiquiatra da CUF Coimbra. Daí que os mitómanos, refere, por seu lado, a médica do Centro Hospitalar Universitário do Porto, sejam “pessoas com escasso amor próprio e elevados níveis de desejabilidade social, ou seja, que procuram o afeto e a aceitação por parte dos outros”. Por isso, o “mitómano mente sobre a realidade, para fazê-la parecer melhor, aparentar mais do que tem ou encobrir algo”, diz Manuela Matos.
3 – Quais os sinais de alerta?
Pode ser “muito difícil reconhecer este problema, porque a rede de histórias irreais é quase tão real que o próprio quase acredita nelas e não o reconhece como problema”, considera Manuela Matos, esclarecendo que, normalmente, “são as pessoas mais próximas que alertam, quando desmascaram as mentiras e percebem a interferência que causa no doente e nas suas relações interpessoais”. Zulmira Correia deixa uma sugestão: “Prestar atenção a alguns sinais da narrativa pode ser um ponto de partida para ajudar a identificar algo patológico. Os relatos são detalhados, complicados, fantásticos ou dramáticos, deixando sempre o mitómano como o herói ou a vítima.” E aproveita para explicar que, “nas classificações internacionais”, a mitomania não é dada como doença, mas um sintoma de perturbações como a de personalidade, a obsessivo-compulsiva, do comportamento alimentar e as relacionadas com o abuso de substâncias. “Mais frequentemente, associa-se à perturbação factícia, que leva a pessoa a produzir, intencionalmente, sintomas físicos ou mentais de alguma doença que não possui.”
O mitómano “mente sobre a realidade para fazê-la parecer melhor, aparentar mais do que tem ou encobrir algo”, explica a médica Manuela Matos
4 – Quais os sintomas?
Distinguir mentiras num comportamento normal de sintomas de um quadro patológico é, por vezes, difícil, admite Zulmira Correia, explicando, no entanto, que há sintomas característicos: “A tendência duradoura para contar mentiras, sendo integrado no modo de vida da pessoa, e estar assente numa motivação emocional, por medo da rejeição ou da crítica.”
“As mentiras são contadas sem existir um sentimento de culpa”, acrescenta Manuela Matos, notando que “as histórias podem ir de conteúdos pobres e difíceis de acreditar, a conteúdos bem elaborados, ricos e minuciosos”. Ao contrário dos delírios ou alucinações, explica, “o doente tem consciência da falsidade das histórias”. O mitómano pode apresentar sintomas “depressivos e ansiosos que advêm das complicações psicossociais”.
5 – Como se trata?
O tratamento pode ser bastante complicado, pois a pessoa raramente reconhece o problema, avisa Zulmira Correira. “O início do tratamento é um trabalho lento e delicado, que envolve acompanhamento psicoterapêutico, podendo recomendar-se o uso de psicofármacos, quando há outra sintomatologia psiquiátrica associada.” Antes de confrontar o mitómano, “é conveniente mostrar-lhe a repercussão que está a ter na vida pessoal e social, tentando encontrar os motivos que levaram a esta situação. “Elevar a autoestima, recuperar a autoconfiança e a confiança dos outros é crucial para o sucesso do tratamento”, considera Manuela Matos.
E na infância?
Para as crianças, mentir faz parte do desenvolvimento cognitivo. Teresa Sá, psiquiatra da infância e adolescência, explica tudo
“Na infância, as mentiras são frequentes, normais e até mesmo necessárias para um desenvolvimento cognitivo e emocional adequados”, descreve, esclarecendo que “o recurso à mentira propicia a elaboração de cenários irreais e o uso da imaginação para estimular a criatividade da criança, criando um espaço que lhe permite, posteriormente, reconhecer os limites da realidade”.
Já as “crianças mais velhas mentem para não desiludir pessoas queridas, para conquistar algo que desejam, fugir de responsabilidades, evitar um castigo ou chamar a atenção dos pais”, detalha a médica.
Por outro lado, as mentiras podem ainda ser a forma “de lidar com angústias ou frustrações, funcionando como mecanismo de defesa primário”. Este comportamento, acrescenta a especialista, tende, no entanto, “a ser abandonado, na idade adulta”, à medida que se “adquire a maturidade necessária para assumir as consequências dos atos”. Mas, avisa, “quando se perde este referencial e se entra num ciclo em que as falsas histórias acabam por se tornar num estilo de vida, a mentira passa a considerar-se um comportamento patológico”.