Entre os mais de dois mil jovens internados na ala Covid-19 do hospital pediátrico do distrito de Columbia, nos EUA, no final do verão passado, sobressaía o caso de um bebé bastante doente, e com um quadro clínico muito diferente do da maioria das crianças infetadas, que mal apresentam sintomas ou, mesmo quando precisam ser hospitalizadas, tendem em regra a ter casos ligeiros. A verdadeira surpresa chegaria a seguir.
Foi quando os clínicos mediram a carga viral da criança. Era 51.418 vezes maior do que a encontrada no resto dos outros pacientes pediátricos. Depois, quando sequenciaram o vírus ali detetado, encontraram uma variante que nunca tinham visto antes.
Roberta DeBiasi, a chefe do serviço de doenças infeciosas do hospital, sabia que não podia concluir nada com apenas um caso, mas logo soaram todos os alarmes. Pouco depois, as equipas de investigação acabaram por encontrar mais indícios de que uma variante com a mutação N679S pode ter circulado um pouco por todo o norte da costa leste americana. “Pode ser uma completa coincidência”, disse DeBiasi, citada pelo The Washington Post. “Mas os dados que temos mostram uma associação bastante forte”.
Artigo em pré-publicação
Como a medida de carga viral inicialmente recolhida era tão alta, os clínicos daquele hospital pediram nova análise, desta vez num tipo de máquina diferente. Os resultados foram semelhantes: segundo a sequência genómica encontrada, o vírus que infetou a criança tinha não só a mutação do pico DD614G como a agora nomeada N679S. Pouco depois, seguia a proposta da informação recolhida para o medRxiv, a conhecida plataforma de pré-publicação de artigos científicos que ainda não foram avaliados pelos pares. Segundo DeBiasi e os outros autores, a mudança encontrada parece estar relacionada com a forma como o vírus entra no corpo dos mais novos. As reações não demoraram.
Para William Hanage, por exemplo, um epidemiologista da Escola de Saúde Pública de Harvard, ouvido pelo mesmo The Washington Post, é possível que “a mutação do pico tenha algo a ver com a carga viral detetada” – mas ainda será cedo para tirar conclusões. É que, sublinhou, para que a infeção se faça notar nas crianças, as cargas virais têm se ser sempre muito elevadas”.
Jeremy Luban, um virologista da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts, também consultado pelo mesmo diário americano, foi igualmente muito cauteloso. “Pode ser por causa de uma nova variante ou simplesmente porque se trata de um recém-nascido, com um sistema imunitário imaturo, permitindo que o vírus se replicasse de uma forma descontrolada.”
Idade diferente, atuação diferente?
Naquele hospital pediátrico de Columbia, onde o caso foi identificado, nenhum outro paciente apresentara a mesma variante. Mas, quando os investigadores consultaram uma base de dados internacional, utilizada por cientistas de todo o mundo para comparar sequências genómicas, ficaram supreendidos por terem encontrados amostras iguais nas vizinhas regiões de Maryland, Virgínia e também Delaware.
Os dados recolhidos, depois, em outros centros hospitalares americanos, no início deste 2021, confirmaram um aumento no internamento de crianças – tal como um crescendo da doença rara conhecida como MIS-C, a sigla em inglês para síndrome inflamatória multissistémica, que é potencialmente fatal e pode ocorrer quatro a seis semanas após uma infeção por SARS Co-V2. No seu hospital pediátrico, DeBiasi também notou que os casos de jovens a necessitar internamento com aquela doença tinham praticamente duplicado.
“Se não conseguirmos compreender o que acontece em indivíduos jovens, isso querer dizer que não temos o retrato completo da atuação do coronavírus em pessoas de idades diferentes”, acrescenta ainda Jennifer Dien Bard, diretora do laboratório de virologia da Children do Children’s Hospital Los Angeles e uma das coautoras do estudo publicado no medRxiv, que procura explicar o que provocou aquele valor estratosférico na carga viral daquele bebé.
A dúvida persiste, já que, segundo o que se sabe até agora, as crianças em geral não são tão suscetíveis à infeção pelo SARS CoV-2 como os adultos e apresentam uma taxa de doença grave relativamente baixa. Mas perante novas variantes – como a do Reino Unido, África do Sul e Brasil – que inicialmente sugeriam ser mais infeciosas para os mais novos, o que DeBiasi e os seus colegas salientam é que “há ainda muito por compreender sobre a atuação deste coronavírus”.