Do outro lado do ecrã, está um homem de 74 anos que já tomou as duas doses da vacina a que tinha direito – num país que começou por vacinar os maiores de 65 anos e os profissionais de saúde que há um ano combatem a pandemia – mas nem por isso considera que se pode baixar os braços perante essa ameaça invisível chamada Covid-19. A partir da Escola de Saúde Pública da cidade de Haifa, em Israel, Manfred Green, o epidemiologista que tomou as rédeas do centro de controlo de doenças daquele país entre 2008 e 2014, garante que continua a ser um otimista quanto à nossa convivência futura com esse micro-organismo muito desafiador que é o SARS-CoV-2. Mas insiste que só com uma estratégia conjunta é que a humanidade pode aspirar a uma vida mais próxima do normal como o conhecemos – a mesma razão que o fez signatário do repto lançado pela task-force para a Covid-19 da Associação de Escolas de Saúde Pública da Região Europeia (ASPHER, na sigla em inglês) a que pertence, publicado há poucos dias no British Medical Journal, uma das mais influentes e conceituadas publicações sobre medicina no mundo.

VISÃO: Faz agora um ano que a Organização Mundial da Saúde anunciou que estávamos perante uma epidemia chamada Covid-19 e já estamos a vacinar populações. Que avaliação faz da situação atual?
Manfred Green: Há um ano, ninguém esperava algo como o que vivemos e é extraordinário que haja já várias vacinas no mercado com graus de eficácia tão altos. A tecnologia usada é muito boa, e podemos sempre atualizá-la. O problema agora é que os planos de vacinação ganharam um nacionalismo que não é bom para o desenrolar do processo.
Como é que este processo devia ser conduzido?
Os países podem sempre contratar vacinas individualmente às farmacêuticas, mas era muito mais valioso que se juntassem todos à Covax, a iniciativa global destinada a fazer chegar vacinas contra a Covid-19 aos países mais pobres. O processo tem de ser conjunto e não pode deixar ninguém de fora, sobretudo devido a nacionalismos.
Se só alcançarmos imunidades de grupo locais, em determinadas regiões, de tempos a tempos vão repetir-se os confinamentos
Foi isso que o levou a assinar aquele repto lançado no British Medical Journal, no qual se lê “estamos a ver a face feia da vacinação” e que “os países ricos compraram mais vacinas do que precisam?”
Sem dúvida. Assim, não vai mesmo “ficar tudo bem”. Pôr fim a esta pandemia é um desafio para toda a humanidade. Se só alcançarmos imunidades de grupo locais, em determinadas regiões, de tempos a tempos vão repetir-se os confinamentos. Torna todo o processo de uma enorme ineficácia.
Recentemente, houve uma grande agitação na Europa por causa da Sputnik V, a vacina produzia pela Rússia, que gerou desconfiança desde que foi anunciada, no verão. Há razões para não a usar?
De todo. É claro que tem de cumprir os regulamentos e de ser aprovada pelas entidades reguladoras, mas é preciso não esquecer que eles têm muita experiência em fazer vacinas, há muito que as produzem para a sua população. Sabe-se que estão a usar uma tecnologia semelhante à da AstraZeneca e, portanto, logo que seja submetida, deve ser considerada. Não há motivos para recusar uma vacina só porque é feita na Rússia.
Israel é, por outro lado, o país na frente do processo de vacinação a nível mundial. Qual é o segredo?
Antes de mais, temos um bom serviço nacional de saúde, que abrange toda a população. Depois, fizemos um grande investimento a comprar vacinas, ao mesmo tempo que promovemos campanhas de informação em larga escala – e mesmo assim é preciso reconhecer que algumas bolsas não estão suficientemente imunizadas. Por exemplo, as mulheres têm oferecido uma resistência maior a serem vacinadas, devido aos rumores de que lhes pode afetar a fertilidade e as gestações.
As grávidas podem ser vacinadas?
Sim, sim, o ideal é ser entre o segundo e o terceiro trimestre da gravidez. Há até casos em que os bebés nasceram com anticorpos, o que é uma boa notícia.
A maioria dos países optou por vacinar primeiro os mais velhos e vulneráveis e os profissionais que estão na linha da frente, mas nem todos. O que pensa de políticas como a da Indonésia, que decidiu vacinar primeiro a população ativa, que é a que mais transmite o vírus?
O objetivo principal das vacinas é salvar vidas. Assim, faz todo o sentido que seja dada prioridade às pessoas que, se forem infetadas, podem não sobreviver – e, claro, também a quem cuida delas. Limitar a sua transmissão é também um objetivo, mas, sobretudo num curto espaço de tempo, é mais difícil. Nesse caso, o confinamento é mais eficaz.
Todo o combate à Covid-19 foi também recentemente abalado com a descoberta de novas variantes. Vamos ter de fazer ajustes às vacinas?
Temos de avaliar os resultados oferecidos por todas as vacinas, as que já estão no mercado e as que esperamos para breve, como a da Johnson & Johnson e a da Curevac. Todas têm tecnologia muito eficaz, mas podemos sempre atualizá-la, se for o caso. Aliás, é muito provável que tenhamos reforçar a vacinação de tempos a tempos.
E podemos misturar vacinas de produtores diferentes?
Sim, se tiveram a mesma tecnologia. É uma questão de eficácia, não acredito que possa fazer mal fazer o reforço com outra. Mas o mais certo é a resposta gerada ser menor do que o esperado. Uma outra hipótese é fazer a inoculação em simultâneo com a vacina da gripe, no mesmo momento. Felizmente, há muitas possibilidades em aberto.
É possível estimar um fim para este vírus?
Não somos geralmente muito bem-sucedidos a erradicar vírus. Pelo menos, nos últimos 40 anos não: ao tempo que andamos a tentar fazê-lo, com a poliomielite, o sarampo, a rubéola… Ainda muto estamos muito no início da convivência com o SARS-CoV-2. Por ora, devemos focar-nos em tentar mantê-lo em níveis baixos e que a sua ação seja o menos severa possível para todos.
Ninguém está a salvo até todos estarem a salvo
Isso quer dizer que ainda estamos longe da imunidade de grupo?
Poderá ser possível num país, vacinando perto de 80% da sua população. Mas será temporária ou pelo menos muito frágil, já que pode ser abalada mal se abram as fronteiras. Vemos os exemplos da Nova Zelândia e do Vietname que reduziram a circulação do vírus para valores muito baixos. Mas vivem sob um confinamento muito apertado, com medidas duríssimas para a população. O mais certo é termos de continuar a usar máscaras e a manter distanciamento social durante algum tempo.
Mesmo quem for, entretanto, vacinado?
Sim, sabemos que nenhuma vacina é 100% eficaz. Significa que há 5 a 10% de hipótese de não se ter produzido anticorpos suficientes para travar a infeção.
Essa margem de erro pode aumentar se se dilatar os prazos entre a primeira e a segunda dose, como alguns governos decidiram fazer para enfrentar a escassez de vacinas?
Alargar essa janela temporal não costuma afeta o efeito da vacina. Há casos em que se pode inclusive chegar até às doze semanas e não perder a eficácia pretendida.
Devemos esperar novas vagas no próximo inverno, apesar de tudo o que se possa avançar até lá?
Temos pelo menos de nos convencer de que as máscaras e o distanciamento social ainda deverão estar connosco. Sabemos que é um vírus endémico e que no inverno as pessoas ficam mais dentro de portas, e por isso mais juntas, o que promove a transmissão. Sobretudo considero que devemos ser cuidadosos e não nos revelarmos demasiado confiantes por já haver vacinas. Vamos ter de continuar a vacinar muita gente, durante muito tempo. Além disso, sabemos que quanto mais o vírus circula, mais variantes devem aparecer.
Daí ter já mencionado que podemos ter de atualizar as vacinas?
Ninguém está a salvo até todos estarem a salvo. Já sabemos que esta não é a pior pandemia que há de assolar a humanidade e que novos vírus devem aparecer por causa do aquecimento global. Temos ainda de compreender que partilhamos o mundo com todo o tipo de animais, dos mamíferos aos insetos, passando por todo o tipo de micro-organismos.