Em dez dias, foram cinco vezes às urgências. Em nenhuma delas Alda Adão, 57 anos, conseguia ter uma resposta para o que se passava com o filho, David Cadeirinhas, então com 8 anos. O diagnóstico foi uma mononucleose, conhecida como a doença do beijo, mas nenhum tratamento parecia resultar. A febre não baixava, as manchas no corpo não desapareciam e as dores nas articulações eram cada vez piores. Ao décimo dia, em desespero, decidiu ir a um outro hospital, desta vez ao Garcia de Orta, em Almada. David já não conseguia andar ou alimentar-se corretamente. “A médica mal o viu, quis logo chamar o cardiologista”, recorda a oficial de justiça contando que mal o especialista começou o ecocardiograma, percebeu que algo de grave se passava com o coração do filho. “O médico ficou em pânico; nunca tinha visto nada assim”, lembra. David tinha uma das coronárias – as artérias do coração responsáveis pela circulação do sangue – muito inflamada e dilatada, já com um centímetro de largura. Naquele dia, tiveram o diagnóstico correto e era pior do que qualquer problema que se suspeitara até ali: David sofria da doença de Kawasaki, um problema raro que afeta o coração das crianças e que ficou conhecido nos últimos tempos por ter sido associado à Covid-19.
Mas, entretanto, as autoridades de saúde já anunciaram que afinal a síndrome que tem atingido centenas de crianças pelo mundo infetadas com o coronavírus é diferente da doença de Kawasaki – e, a 15 de maio, a Organização Mundial da Saúde atribuiu uma definição específica para o novo problema: síndrome inflamatória multissistémica.
São situações distintas, explica Rui Anjos, cardiologista pediátrico no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa. “Já foi confirmado que este novo problema tem a evidência da Covid-19”, nota. No entanto, o facto de existirem vários sintomas semelhantes acabou por criar alguma confusão, nota Marta Conde, reumatologista pediátrica do Hospital Dona Estefânia, que nos últimos anos tem acompanhado dezenas de casos de crianças com a doença de Kawasaki. Esta, tal como a síndrome que se desenvolve em crianças infetadas pelo vírus Sars-Cov-2, afeta o coração, causa manchas na pele, boca vermelha, mãos e pés inchados, olhos vermelhos e febre prolongada, indica a especialista.
No entanto, há diferenças. Rui Anjos explica que a nova doença parece alojar-se mais no músculo cardíaco. Além disso, os doentes com Covid-19 têm “mais frequentemente alterações gastrointestinais, como dor abdominal, diarreia ou vómitos”, esclarece Marta Conde, acrescentando que se está também a manifestar em crianças mais velhas. É que, afirma Rui Anjos, não é comum a doença de Kawasaki aparecer depois dos 5 anos. Certo, avisa, é que é grave, tendo, no entanto, uma incidência baixa. Os casos, revela, devem rondar os 15 a 20, por ano. “Mas é verdadeiramente preocupante porque afeta o coração”, diz, explicando que se trata de uma doença inflamatória que afeta os vasos sanguíneos (vasculite), sobretudo as coronárias, mas que também chega ao músculo cardíaco e à membrana que o envolve. O especialista frisa que apesar de esta doença já ter sido descrita há várias décadas, ainda pouco se sabe sobre ela. A principal incógnita está na causa, ainda que já tenham sido colocadas em cima da mesa várias hipóteses. “Já se formularam diversas teorias. Desde vírus, bactérias, fungos a determinados detergentes”, refere Rui Anjos.
Sublinhando que a doença “não tem causa conhecida”, Marta Conde diz, no entanto, que já se percebeu que algumas crianças têm uma predisposição genética”. “Nessas crianças há um desencadeante, um gatilho ambiental, que leva o sistema imunitário a responder de forma exagerada e desregulada. É isso que provoca a inflamação”, esclarece a especialista, notando que serão os genes os responsáveis pelo facto de no “Japão ser cem vezes mais frequente”.
O que ainda permanece um mistério é a identidade desse gatilho. “A hipótese mais provável é a de que seja infecioso”, acredita a reumatologista, dizendo que pode até existir mais do que um desencadeante. “Há uma série de vírus e bactérias que têm sido associados ao aparecimento da Kawasaki”, conta.
O que falta desvendar é tanto que nem há um teste próprio para identificar a doençça, sendo os médicos obrigados a reconhecê-la por critérios clínicos, algo que dificulta muito o diagnóstico. “Algumas manifestações da doença podem ser, de facto, semelhantes a infeções virais”, diz Marta Conde, que muitas vezes é chamada para confirmar estes casos. “Têm de ter febre prolongada, com mais de cinco dias de evolução”, indica, por seu lado, Rui Anjos, explicando que, para que se confirme o diagnóstico, têm de estar presentes, pelo menos, quatro sintomas da doença: conjuntivite, alterações da boca ou da mucosa oral – nomeadamente a língua muito vermelha, conhecida entre os especialistas como a “língua de framboesa” – ,manchas na pele, gânglios inflamados e mãos e pés vermelhos, inchados e, mais tarde, a escamar.
Confundida com outras doenças
É por ser tão facilmente confundida com outros problemas, que também Mariana, 39 anos, viveu dias de angústia com o filho, Mateus, na altura com 2 anos. Inicialmente, os sintomas indicaram escarlatina, mas as sucessivas idas às urgências pela preocupação constante mudaram o diagnóstico. Afinal, tratava-se de uma virose. “Os médicos diziam-me para não me preocupar, mas sentia-me cada vez pior”, explica, recordando que os sintomas tinham vindo a melhorar ao longo dos dias com a medicação prescrita, até que as mãos e os pés começaram a pelar. Tinha descoberto a doença de Kawasaki num grupo de mães do Facebook, umas semanas antes de o filho adoecer e o instinto maternal levou-a a marcar uma consulta na pediatra. “Ela disse-me que não via um miúdo com este problema há 20 anos, mas que como eu estava tão inquieta, ia passar-me o exame que lhe pedi.” Conseguiu vaga para fazer a ecografia cardíaca no próprio dia e, como tinha vindo a desconfiar desde o início, os sintomas do filho deviam-se à doença de Kawasaki. As coronárias estavam inflamadas, mas não havia sequelas. “Senti-me, por um lado, assustada, porque não deixa de ser um diagnóstico duro, mas, por outro, aliviada, porque já podia haver um acompanhamento adequado”, diz. O tratamento de imunoglobulina endovenosa foi iniciado de imediato, mas ficou internado no hospital por três dias, nos cuidados intensivos, para garantir que estava realmente tudo bem. “Todas as crianças, a não ser que sejam casos descobertos muito tarde, fazem este tratamento”, diz Marta Conde, já que foi provado que consegue diminuir significativamente o risco de aparecimento ou agravamento de complicações nas artérias coronárias. A imunoglobulina endovenosa é feita ao longo de 12 horas e, segundo Rui Anjos, as crianças melhoram muito rápido: “Da noite para o dia.” Só 4% a 5% não respondem a este tratamento.
David Cadeirinhas entra nesse pequeno grupo. Juntamente com a imunoglobulina fez os corticoides intravenosos, na esperança de que pudessem fazer efeito. Não fizeram. Nem na primeira vez, nem na segunda. Foi só na terceira dose que os sintomas começaram a desaparecer. “Estava em pânico, cada vez que o médico me via só me perguntava se tinha consciência de que o meu filho podia morrer a qualquer momento”, recorda Alda Adão, lembrando que David, durante essas três semanas internado a tentar sobreviver, emagreceu cinco quilos. Se este caso mostra um dos cenários mais graves da doença, a história de Miguel Caeiro, surpreendido pelos sintomas aos 4 anos, é um bom exemplo de que há situações mais leves. Tinha a artéria ligeiramente dilatada, mas nunca deixou de comer ou de brincar. Tanto que Teresa Guerreiro só descobriu que o filho não tinha sarampo – como havia sido diagnosticado – quando já estava pronto para regressar à escola. As manifestações tinham passado todas, mas as mãos e os pés começaram a escamar. “A pele dele parecia a de uma cobra quando está a mudar”, conta a assistente técnica, de 52 anos. Decidiu recorrer ao pediatra da Câmara Municipal de Lisboa, onde trabalha o marido, José Caeiro, 55 anos, para ficar descansada. Assim que Miguel colocou as mãos em cima da secretária do médico, a associação à doença de Kawasaki foi imediata. E foram encaminhados para a cardiologia pediátrica. “Levámos um susto enorme, quando o médico nos disse que era uma coisa grave e que ele podia ter morrido”, afirma. O especialista explicou ao casal que o filho teria de fazer exames ao coração e deu-lhe duas medicações possíveis, consoante o que fosse observado. A ecografia cardíaca mostrou apenas uma ligeira inflamação, sem que houvesse qualquer outro problema associado e, como tal, puderem ir para casa, onde deram início ao tratamento. “Durante cerca de um mês fez medicação para que o sangue ficasse mais diluído”, explica a mãe, acrescentando que o filho, depois de repetir os exames para garantir que estava tudo bem, teve alta.
Já David, ainda hoje, com 25 anos, não se consegue libertar dos cardiologistas. Desde que saiu do internamento nunca mais se livrou do problema: apesar de fazer medicação diária, a inflamação das coronárias não desaparecia por completo. Numa das consultas de rotina, o ecocardiograma levou a família a um novo estado de angústia: tinha aneurismas nas coronárias. O pior que esta doença lhe podia causar. “Quanto mais grave é a inflamação, maior é a probabilidade de afetar as paredes dos vasos e estes podem sofrer de diversas maneiras. O mais temível são os aneurismas”, afirma Rui Anjos.
O primeiro passo é, explica o especialista, ir vigiando, porque podem romper e, nesse caso, é fatal, mas também podem formar-se coágulos e, consequentemente, a artéria pode entupir. Consoante o tamanho da dilatação, o tratamento varia. Os aneurismas maiores e, como tal, mais perigosos precisam de uma medicação mais pesada e agressiva – os anticoagulantes – que impede a formação dos tais trombos. Já os aneurismas mais pequenos obrigam à toma diária de uma aspirina, um antiagregante. Foi esse comprimido que Alda Adão deu diariamente ao filho, enquanto tentavam que as coronárias deixassem de estar inflamadas e começassem a cicatrizar. E, de facto, cicatrizaram, mas os aneurismas acabaram por calcificar – um dos maiores riscos deste processo. Se a circulação do sangue for afetada, a solução é a operação, diz Rui Anjos, explicando que existem duas técnicas possíveis. Uma são malhas metálicas – stents – que são levadas dentro das coronárias e, chegando ao local apertado, incham e tentam alargar o vaso. Para David, a solução foi mais complexa. Retiraram-lhe uma outra artéria do corpo, a mamária interna, para que se pudesse ultrapassar o aperto e ser ela a levar o sangue ao coração. “É um desvio, por isso é que se chama bypass coronário”, realça o cardiologista. Alda Adão e o filho foram finalmente para casa, ao fim de 15 dias. Até ali, conta, o seu filho “viveu com uma espada em cima da cabeça”.
Os especialistas dizem que a maior parte das crianças responde bem ao primeiro tratamento e que não fica com quaisquer mazelas cardíacas, sendo os casos tão graves como o do David, raros. João, filho de Carolina, 44 anos, que teve a doença de Kawasaki pouco antes de fazer 3 anos, recuperou totalmente, mesmo que as manifestações tivessem sido bastante agressivas. O derrame que tinha à volta do coração era a causa da febre que rondava os 38,5, a falta de apetite, os vómitos, e a apatia. Chegou mesmo a ter cristais na urina, por já estar desidratado. “Não falava nem brincava. Ficava só a olhar para o nada, no colo, todo o dia”, recorda a psicóloga, que viveu momentos de desespero e pânico ao vê-lo assim. Logo que foi diagnosticado, iniciou o tratamento de imunoglobulina e ficou internado nos serviços de observação por cinco dias. João teve, à semelhança dos outros, de ser acompanhado por um cardiologista pediátrico durante anos. Fez a aspirina ao longo de seis meses, para prevenir, e as ecografias cardíacas repetiram-se, durante anos, até há pouco tempo. Teve alta, depois de fazer uma prova de esforço.
David Cadeirinhas, hoje com 25 anos e já consultor numa empresa, ainda faz a aspirina e vai fazer para o resto da vida. Ainda assim, a mãe diz que ele recuperou a vida toda. Miguel Caeiro, aos 21 anos, é estudante de Engenharia Informática. Os mais pequeninos, João, de 9, e Mateus, de 8, também estão na escola. Todos estão saudáveis, mas alguns com receio da Covid-19. O David, diz a mãe, não pode ter qualquer infeção. “Nem sequer ter um dente com cáries.”
A nova síndrome das crianças com o Sars-Cov-2
Ainda se sabe muito pouco sobre este problema que tem afetado o coração dos mais novos, no entanto, as desconfianças de que se pudesse tratar da doença de Kawasaki caíram por terra. Esta síndrome apareceu com o novo coronavírus
Os alertas sobre uma inflamação no coração em crianças infetadas com a Covid-19 começaram a ser dados por algumas sociedades de pediatria europeias. Em Portugal também há casos. Segundo Rui Anjos, cardiologista pediátrico, no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, há pelo menos duas crianças internadas em Lisboa com este diagnóstico. Trata-se de um problema de saúde totalmente novo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) batizou, em 15 de maio, de síndrome inflamatória multissistémica. Chegou a pensar-se que era a doença de Kawasaki, mas, segundo os médicos, essa hipótese foi afastada.
Mas se em Portugal o número de casos é muito pequeno, noutros países a situação é mais preocupante, havendo muitos doentes, nota Rui Anjos, dando o exemplo de França, que já conta com 50 ou do Reino Unido, que regista números ainda maiores. Segundo Marta Conde, reumatologista pediátrica no Hospital Dona Estefânia, também os EUA, Alemanha, Áustria, Espanha, Itália ou a Suécia já entram nas contas de países com crianças infetadas com Covid-19 que desenvolveram esta inflamação no coração. Quase todas dão entrada nas urgências com sintomas parecidos aos da doença de Kawasaki, como manchas na pele, e uma inflamação alojada no coração. No entanto, o local onde se dá a inflamação parece diferenciar as duas doenças. “Esta nova síndrome parece afetar mais o músculo cardíaco e a bolsa que o envolve – o pericárdio –, enquanto a doença de Kawasaki afeta mais as coronárias, responsáveis pela circulação do sangue no coração”, explica o cardiologista Rui Anjos.
Depois de classificar a nova síndrome, a OMS lançou algumas recomendações: as crianças e os jovens, entre os 0 meses e os 19 anos, com febre por mais de três dias, diarreia, vómitos ou dor abdominal, conjuntivite, tensão arterial baixa e com suspeitas de terem contraído o vírus ou de terem estado em contacto com alguém que o tenha devem ir ao hospital.
“Esta síndrome não parece ser tão grave como alguns casos graves da doença de Kawasaki e a resposta ao tratamento julga-se melhor”, refere ainda Rui Anjos. Por seu lado, Marta Conde garante que, tal como a Kawasaki, esta nova síndrome também é rara.