Um ano depois de o mundo ter começado a decretar quarentenas e a promover o distanciamento social – primeiro, na China, ainda em janeiro, e depois sucessivamente um pouco por todo o mundo – os peritos em vírus e transmissão de doenças têm agora uma outra visão sobre a forma como a Covid-19 se espalha: concordam que espirrar, tossir e falar ruidosamente pode levar à queda de gotículas em superfícies, mas que o risco de infeção por essa via é baixo. Essa é a convicção de Emanuel Goldman, microbiologista da Rutgers New Jersey Medical School, Emanuel Goldman, agora citado pela Nature – que faz assim uma espécie de flashback a tudo por que passámos este ano.
Em março passado, recorda, o próprio Goldman não ia a um supermercado sem máscara e luvas, para evitar correr riscos desnecessários caso tocasse numa superfície contaminada. Pouco depois, sucediam-se os estudos a mostrar que o SARS CoV-2 persistia no plástico e no aço durante dias – e isto não só fez manchetes por todo o mundo como desencadeou uma série de conselhos sobre a melhor forma de descontaminar tudo, de maçanetas de portas a espaços interiores por inteiro. Ainda em fevereiro, as próprias orientações da Organização Mundial da Saúde alertavam que o vírus que causa a Covid-19 podia propagar-se através de superfícies contaminadas, conhecidas como fómites (objeto ou material suscetível de alojar e transmitir um agente infecioso). E até pelo menos ao verão multiplicaram-se as recomendações para que as pessoas desinfetassem os ambientes comuns na comunidade – casas, autocarros, escolas, lojas… – especialmente os pontos frequentemente tocados.
Foi por essa altura que Goldman se decidiu a analisar mais de perto as provas em torno das tais fómites. O que descobriu foi que havia muito pouco a sustentar essa possibilidade – estudo publicado no The Lancet Infectious Diseases, em julho – e a sua convicção só se fortaleceu desde então.
As convicções e a (in) coerência dos conselhos
Mas não só. Muitos outros, também chegaram, entretanto, a conclusões semelhantes. No final de maio, o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) afirmava já que aquela via “não é considerada como a principal forma de propagação do vírus”. Agora, afirma que a transmissão através das superfícies “não é considerada uma forma comum de propagação do COVID-19”.
Só que nem sempre as orientações dadas foram coerentes com esta ideia – recorde-se que, em novembro, as autoridades chinesas introduziram diretrizes novas que exigem a desinfeção das embalagens de alimentos congelados vindos de outros países. E no próprio site do CDC continuava a ler-se que “a desinfeção frequente de superfícies e objetos tocados por múltiplas pessoas é importante”. Pelo meio, insistiam que o importante é lavar as mãos, sobretudo antes de as levar à cara.
Em novembro, outra voz se levantou sobre a questão da desinfeção das superfícies. Segundo escrevia Linsey Marr, especialista em transmissão aérea de virus, que assinaria ainda um artigo de opinião no The Washington Post, “tornou-se claro que a transmissão por inalação de aerossóis – as gotículas microscópicas – é um modo de transmissão importante, senão mesmo dominante”. Daí considerar que “a atenção excessiva em tornar as superfícies imaculadas ocupa tempo e recursos limitados que seriam melhor gastos na ventilação ou na descontaminação do ar que as pessoas respiram”.
Do laboratório para o mundo real
A grande questão agora, insiste Goldman, é que, embora seja possível provar que o coronavírus sobrevive em superfícies, a maioria desses estudos não testou as condições que existem fora dos laboratórios. Muitos testes, salienta ainda aquele microbiologista, puseram-se a analisar a presença da saliva em condições controladas, alargando assim, remata “o fosso entre as condições experimentais e as do mundo real”.
E mesmo nos casos em que o cenário de estudo era mais aproximado não se conseguiu avançar muito nessa teoria. Veja-se o caso de Brosh-Nissimov, que dirige a unidade de doenças infeciosas no Hospital Universitário Assuta Ashdod em Israel, e que levou avante uma análise detalhada a objetos pessoais e mobiliário em unidades de isolamento hospitalar e quartos, num hotel onde havia doentes a cumprir quarentena. Metade das amostras confirmaram a presença do vírus, mas segundo concluíam os investigadores, nenhum daquele material viral foi realmente capaz de infetar células.
Ainda assim, Ben Cowling, epidemiologista da Universidade de Hong Kong, citado pela mesma Nature, mostrou-se prudente nas conclusões: “Só porque a viabilidade não pode ser demonstrada, e embora seja provavelmente raro, não significa que não tenha havido transmissão em algum momento”.
O caso chamou também a atenção de Amy Pickering, então investigadora na Universidade de Tufts em Medford, no Massachusetts, EUA, que dedicou igualmente algum do seu tempo a analisar amostras de superfícies interiores e exteriores. Comparando os níveis de infeção local com a frequência com que as pessoas tocavam em maçanetas de portas e botões nas superfícies pedonais, a sua equipa estimou que o risco de transmissão por tocar numa superfície contaminada era inferior a 5 em 10 mil casos, revelando uma percentagem muito menor do que através de aerossóis.
“Teoricamente é possível, mas na prática revela-se muito rara”, sublinhou Pickering, que agora está na Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Muitas coisas têm de se encaixar para que essa transmissão possa acontecer”.
Esterilização das superfícies, não; mais ventilação em espaços fechados, sim
É esta sucessão de acontecimentos improváveis que explica porque, numa comparação global das intervenções governamentais para controlar a pandemia nos seus primeiros meses, se concluiu que “a limpeza e desinfeção de superfícies partilhadas era uma das menos eficazes para reduzir a transmissão”. Tanto os confinamentos como o distanciamento social continuavam a permitir alcançar maiores reduções na transmissão, avançavam os autores de um estudo também publicado pela Nature, em novembro.
Assim, um ano depois dos primeiros dados adiantados pela China – que garante ter identificado pelo menos uma pessoa contagiada através do toque numa superfície contaminada – uma grande maioria de investigadores insiste agora que são as pessoas à nossa volta e o seu comportamento (e não as superfícies…) que devem ser alvo de preocupação.
“Mesmo as provas recolhidas em eventos de super disseminação, em que inúmeras pessoas foram infetadas de uma só vez, geralmente num espaço fechado e cheio de gente, apontam claramente para a transmissão por via aérea”, acrescenta ainda Marr, considerando que “é preciso inventar alguns cenários realmente complicados para poder considerar a possibilidade do contágio através de fómites”. No seu entender, crucial mesmo é “a lavagem das mãos” e a “ventilação em espaços fechados”, isso sim, “mais do que esterilizar superfícies”.
Amy Pickering, a tal cientista que conduziu os estudos comparativos sobre a forma mais prevalente da transmissão, concorda: “colocar as compras da mercearia numa espécie de quarentena e desinfetar todas as superfícies está a ir longe demais. “Exige muito trabalho e não reduz por aí além a exposição das pessoas ao vírus”, insiste, antes de acrescentar que é na “higiene razoável das mãos, bem como no uso de máscara e o distanciamento social” que devemos concentrar todo o nosso esforço para interromper as cadeias de contágio.
…e lavar as mãos, sempre
No entanto, apesar de todos estes dados apontarem no mesmo sentido, autoridades de saúde como a Organização Mundial da Saúde (OMS) ou mesmo o CDC, ainda não descartaram por completo a questão das superfícies. Ou, como disse um porta voz da OMS à Nature, cauteloso, “há poucas provas de transmissão através de fómites”. No entanto, “é uma transmissão considerada”.
Mas mesmo perante isto, Marr insiste a explicação para este tipo de incoerência é muito simples: como “excluir definitivamente a transmissão superficial é difícil”, as autoridades mostram-se relutantes porque as pessoas podem interpretar isso como uma verdade absoluta. “Nunca se quer dizer para não se ter cuidado, porque poderá acontecer e, como se sabe, devemos seguir o princípio da precaução.”
Também é verdade que o facto de haver limpeza e desinfeção dos espaços comuns a muita gente deixa a maioria das pessoas bem mais confortável – como se viu nos resultados de um estudo feito pela autoridade de transportes americana no final do verão, em que três quartos dos passageiros confirmaram que a limpeza e desinfeção regular os fazia sentir seguros.
Mais útil até do que usar máscara
Mas para Goldman, o tal investigador que desde o verão anda a insistir que a desinfeção das superfícies contribui muito pouco para reduzir a transmissão, o que era preciso agora era insistir nas regras básicas: usar máscara sempre que se sai de casa e lavar as mãos frequentemente. “É a melhor forma de nos protegermos de uma qualquer infeção. Estejamos ou não em pandemia”.
Uma convicção igualmente partilhada por Didier Pittet, o epidemiologista suiço conhecido por ter patenteado o álcool-gel, invenção que alterou o panorama das infeções hospitalares nas últimas décadas, depois da implementação, nos hospitais da Universidade de Genebra, na Suíça, do modelo que ficou conhecido como “The Geneva Hand Hygiene Model”, publicado na The Lancet no já longíquo ano de 2001, e que recomendava a lavagem das mãos com água e sabão – ou então álcool-gel se tal não fosse possível – sempre que se iniciava qualquer intervenção médica. Resultado? Houve uma diminuição de quase 50 por cento nas infeções associadas aos hospitais. Mas parece ser uma aprendizagem que muitos persistem em não cumprir, no seu dia a dia.
Ou, como relatava a Europe 1, uma cadeia de rádio privada em França, no final de 2020, e de acordo com dados das autoridades de saúde do país, os franceses aderiram em massa ao uso de máscaras, nestas novas vagas da Covid-19, mas andavam a lavar e a desinfetar muito menos as mãos do que há um ano.
Ora, insiste Didier Pittet, a quem Emmanuel Macron pediu recentemente para avaliar as razões da subida das infeções no país, citado pela Europe 1, “lavar as mãos é mais útil do que usar uma máscara”, defendendo por isso que é “absolutamente necessário” colocar a lavagem das mãos no centro do debate. Primeiro, porque “quando se toca num ambiente em que o vírus pode estar e se põe as mãos na cara, pode-se infetar a si próprio. E depois porque, se tocamos alguém, podemos estar a transmitir-lhe o vírus”. Ou, como costuma dizer, “não é o vírus que circula, são as pessoas”.