Se a “task force” que gere o plano de vacinação contra a Covid-19, coordenada por Francisco Ramos, ex-secretário de Estado da Saúde, e o Governo dizem que o fator idade está considerado nas opções tomadas, por darem prioridade aos residentes em lares e às pessoas que têm doenças graves, Constantino Sakellarides, diretor-geral da Saúde entre 1997 e 1999, e professor catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa, contrapõe, em entrevista à VISÃO, que aquela alegação “limita-se a contornar um facto indiscutível”. A idade “é, em si, independentemente de outras associações, um fator de risco de primeira grandeza – cerca de dois terços dos maiores de 80 anos não vivem em lares”, alerta. E lembra não haver “qualquer dúvida” sobre “a enorme vulnerabilidade das pessoas com mais de 80 anos, que representam dois terços dos mortos causados por esta doença”. Por isso mesmo, e ao contrário do plano português, o Reino Unido, a França, a Alemanha e os EUA subdividem os grupos prioritários de vacinação, “de acordo com a progressão do risco de mortalidade com a idade, em maiores de 80 anos, depois os maiores de 75, a seguir os maiores de 70, e assim sucessivamente”, estejam ou não em lares, explica Constantino Sakellarides. Ou seja: enquanto os quatro países referidos “vão vacinar os mais idosos durante o inverno, já segundo o plano português grande parte deles apenas serão vacinados na segunda metade da primavera”, avisa o ex-diretor-geral da Saúde. Constantino Sakellarides confessa-se “surpreendido” com “a intransigência das autoridades nacionais quanto à alteração da opção tomada”, a qual, sublinha, não é sustentada por “nenhuma” referência científica bibliográfica – quando o plano britânico, por exemplo, tem-nas às dezenas.
Que avaliação faz do plano português de vacinação contra a Covid-19?
Incluo-me entre aqueles, e que são já muitos, que têm um cuidado extremo e grande parcimónia quando fazem a apreciação do desempenho das autoridades, ainda por cima agora, nesta fase aguda e crítica da pandemia que atravessamos. A nossa principal preocupação é ajudá-las a fazer melhor e não dificultar o seu trabalho com críticas irrelevantes. Ou seja, a análise da gestão da pandemia fica para depois, quando ela terminar. Mas, por vezes, há aspetos que não esperam, como é o caso do plano nacional de vacinação contra a Covid-19.
Que questões são essas?
Quando observamos o plano de vacinação do Reino Unido, por exemplo, vemos que há uma diferença substancial nos critérios de prioridade em relação ao plano de Portugal. A solução britânica pondera muito fortemente o fator idade, como não pode deixar de ser. As pessoas com mais de 80 anos e com mais de 75 anos, estando ou não em lares, são vacinadas cedo. Já em Portugal, no plano atual, são vacinadas tarde, se estão fora dos lares ou não apresentam doença clinicamente grave. Também verificamos outro aspeto importante: enquanto o documento do Reino Unido, sobre as prioridades de vacinação, tem duas dezenas de referências científicas bibliográficas, que justificam a opção tomada, o documento português não tem nenhuma. São, pois, dois planos com uma lógica claramente diferente em relação ao fator idade, mas em que num caso essa lógica é suportada explicitamente em trabalho analítico diferenciado e recente, enquanto que a outra não o é.
Mas essa lógica diferente respeita apenas ao Reino Unido?
Não. Os planos do Reino Unido, da Alemanha, da França e dos EUA são todos similares quanto à importância do fator idade, por si só, nos critérios de prioridade de vacinação. Os mais idosos estão sempre à frente. Os objetivos da vacinação para esta pandemia definem-se em três patamares, consensuais na ciência atual, por esta ordem: evitar mortes; proteger os serviços de saúde; criar imunidade de grupo. Ora, a proposta portuguesa difere das outras no peso que dá – ou melhor, não dá – às pessoas de mais idade. Um exemplo: no Reino Unido – com lógica similar, como já referi, à da França, da Alemanha e dos EUA -, vacina-se primeiro nos lares, os utentes e quem lá trabalha. Isto é indiscutível, porque são pessoas idosas particularmente expostas. Mas, a seguir, o Reino Unido vacina os maiores de 80 anos, que não estejam em lares, em conjunto com os profissionais de saúde e de serviços sociais de primeira linha. E, logo depois, vacina os maiores de 75 anos, e, a seguir, os maiores de 70 anos, em conjunto com pessoas portadoras de doenças graves. Nada parecido com o plano português.
Refere-se então ao primeiro patamar – evitar mortes…
Claro. A mortalidade causada pela pandemia aumenta consideravelmente nas idades superiores aos 70 anos e dispara nos maiores de 80 anos. Não há qualquer dúvida, em termos de mortalidade, sobre a enorme vulnerabilidade das pessoas com mais de 80 anos, que representam dois terços dos mortos causados por esta doença. E, por isso mesmo, esses grupos estão incluídos nas primeiras opções de vacinação. Enquanto os quatro países que referi vão vacinar os mais idosos durante o inverno, já segundo o plano português grande parte deles apenas serão vacinados na segunda metade da primavera.
Há, no entanto, quem diga que os planos português e francês são similares.
Não é verdade. No plano francês em primeiro lugar são vacinados os idosos em lares assim como os seus cuidadores, construindo o primeiro grupo, e logo a seguir os maiores de 75 anos e os profissionais de saúde, como parte do segundo grupo. Este não tem nada a ver com o segundo grupo do plano português. Como já disse, esta é também a lógica assumida pela Alemanha e pelos EUA. E convém recordar que os quatro países mencionados concentram as mais prestigiadas instituições académicas de Saúde Pública do planeta.
E parece-lhe que a opção do Governo e da “task force” ainda não foi explicada?
A explicação dada até agora rodeia a questão essencial. Dizem-nos que o fator idade já está devidamente considerado nas opções tomadas, por estar incluído nos residentes em lares e naqueles que têm doenças graves. Isso é verdade, mas limita-se a contornar um facto indiscutível. A idade é, em si, independentemente de outras associações, um fator de risco de primeira grandeza – cerca de dois terços dos maiores de 80 anos não vivem em lares. Tem-me surpreendido, confesso, a intransigência das autoridades nacionais quanto à alteração da opção tomada. É que essas mesmas autoridades e o próprio Governo têm dito, e muito bem, que o plano é dinâmico, que pode e deve ser alterado de acordo com a evolução das circunstâncias e do conhecimento sobre esta matéria. Ora, havendo objeções fundamentadas na comunidade profissional e académica do País, sobre a versão atual do plano, o normal seria que estes pontos de vista fossem convidados a explicar-se, o valor dessas explicações explicitamente ponderado, e as decisões subsequentes também claramente fundamentadas. Nada mais simples e linear. O poder político, aquando de uma primeira versão deste plano, assumiu uma posição muito crítica em relação a essa versão, e ela foi modificada. Agora nem seria preciso tanto. Bastaria insistir que seria preciso ouvir e ponderar seriamente as objeções apresentadas e os factos em que estas se baseiam.
Se a intransigência de que fala persistir, diria que as consequências são imprevisíveis?
Não sei como um poder político pode assumir a responsabilidade de vacinar os mais vulneráveis no fim da primavera, enquanto os outros países os vacinam no inverno. Está em causa vacinar aquelas pessoas que são mais suscetíveis de morrer com esta doença. Não se pode cair no absurdo de ser preciso inscrever num lar uma pessoa de 85 ou 90 anos, que vive confortavelmente em casa, para poder ser vacinada neste inverno!
Seja como for, não está a considerar o “stock” de vacinas disponível em cada momento…
Não é argumento dizer que há poucas vacinas. Não estamos a falar sobre se há muitas ou poucas. Estamos a falar na ordem de prioridades da vacinação. Haver poucas ou muitas vacinas é um assunto de escassa relevância, quando falamos de prioridades. Aqui o que é importante é outra coisa. Para facilitar a aplicação das prioridades adequadas, os países que mencionei, em vez de constituírem um grupo tão numeroso com os maiores de 65 anos, subdividem-nos, de acordo com a progressão do risco de mortalidade com a idade, em maiores de 80 anos, depois os maiores de 75, a seguir os maiores de 70, e assim sucessivamente.
Está a colocar uma questão muito delicada…
Muito delicada e que tem de ser resolvida tecnicamente. Não há nada mais desadequado do que pôr os portugueses a discutirem entre si sobre quem é vacinado primeiro, egoisticamente. Essa é uma discussão que tem de ser evitada a todo o custo. A questão deverá ser resolvida através dos procedimentos técnicos adequados. Já agora, lembro que um dos fatores mais significativos no sucesso do Programa Nacional de Vacinação português, nos seus 55 anos de existência, tem sido o extremo cuidado, mantido ao longo destas últimas décadas, em não deixar ninguém de fora, em não deixar de ouvir qualquer ponto de vista que permitisse fazer melhor.
E o consenso é aqui crucial…
Em questões desta natureza, desta delicadeza, um consenso muito alargado é fundamental. E é possível. Diria até que procurá-lo é obrigatório. Isso consegue-se sempre mais facilmente quando há um máximo de abertura, para considerar todos os dados e os argumentos que eles sugerem. No mundo do conhecimento não há vencedores e perdedores. É na análise e ponderação dos factos que encontramos conjuntamente os melhores caminhos.