“Aquilo que se sabe é que não há, para já, vacinas disponíveis em quantidade suficiente para se imunizar todas as pessoas – daí que se esteja a ponderar usar as doses já disponíveis para tentar aumentar o número de pessoas protegidas. Mas trata-se de atrasar, não suspender. Todos os estudos foram feitos com duas doses. Não faz sentido pensar num cenário sem a segunda dose”, começa por esclarecer Luís Graça, imunologista do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, e membro da comissão técnica da vacinação contra a Covid-19, a propósito da decisão anunciada na semana passada pelo Reino Unido de adiar a segunda toma da vacina até às 12 semanas, ou seja, o dobro do tempo inicialmente previsto – dada a dificuldade assumida das farmacêuticas em fornecer doses suficientes e ao facto de terem uma nova variante do coronavírus a circular.
Mas é um cenário que pode multiplicar-se, como confirmou Graça Freitas, a diretora geral da Saúde, em conferência de imprensa, esta terça-feira, 5, poucas horas depois de se saber que a Bélgica, Dinamarca e Alemanha já tinham pedido às suas autoridades de saúde para avaliarem os riscos e benefícios de uma alteração do género – que permite inocular a primeira dose a um número maior de pessoas, tentado assim que mais ficassem protegidas contra a doença.
“É uma situação a ser estudada em todos os países e em três planos. Primeiro, a Pfizer, que recomendou que se desse a segunda dose num determinado espaço de tempo, terá de ter uma última palavra. Depois, as agências internacionais do medicamento também estão a estudar qual o impacto de alargar o espaço de tempo entre as duas tomas. E estamos ainda a ouvir os mais variados especialistas na matéria. É, de facto, uma questão a ser discutida em todo o mundo”.
Em Portugal, esclareceu ainda, “as 32 mil doses distribuídas foram utilizadas, mas isto não quer dizer 32 mil pessoas corretamente vacinadas. Estas 32 mil doses carecem de outras 32 mil para completarem o sistema vacinal” – antes de sublinhar que ” as vacinas vão chegando semanalmente, por tranches” e “nem todas as pessoas vão ficar imunizadas”.
Adiar, não suspender
É que, como também explica Luís Graça, há ainda outro inesperado fator a influenciar o processo. “Passadas as duas primeiras semanas depois da toma da vacina, registou-se uma quebra efetiva na infeção, o que sugere que há um efeito protetor só com essa primeira dose. Ao se avaliar o atraso de uma segunda dose está-se a considerar o benefício de ter mais pessoas com esta proteção, mesmo que menor do que a desejada. E planear a segunda toma para mais tarde”.
Mas, de qualquer forma, insiste o especialista, não é um adiamento sem data. Ou seja, a recomendação da Pfizer é que a segunda toma ocorra depois do 21º dia; no caso da Moderna, o prazo dilata até aos 28 dias. “Mas em nenhum dos ensaios feitos se ultrapassou os 42 dias até à inoculação da segunda dose, um reforço que faz com que a qualidade dos anticorpos seja melhor e maior. Depois disso é incerto: com o que se sabe é imprescindível que haja uma segunda dose até o fim desse prazo. Para lá disso, é incerto.”
Há ainda outras condicionantes. “Os ensaios foram feitos com poucas pessoas muito idosas e sabe-se que estas produzem menos anticorpos. Uma das dúvidas, por exemplo, é se criarão a mesma proteção do que os mais novos só com uma dose e sobretudo num período mais longo”, exemplifica. Além disso, também se sabe que nenhuma das vacinas é totalmente eficaz – “a eficácia está na casa dos 90 por cento”. Ou seja, mesmo entre quem recebe a vacina, “um em dez vai ter infeção”. Mas os benefícios poderão compensar os riscos. Afinal, como também adiantou Luís Graça, a Agência Europeia do Medicamento já terá dado sinal de que é aceitável atrasar a segunda dose até aos 42 dias – porque houve casos nos ensaios em que a segunda inoculação foi administrada nesse prazo, não se violando assim as recomendações.”
Unânime, mas pouco…?
Foi no final da semana passada que o Reino Unido anunciou a decisão de adiar a segunda toma da vacina contra a Covid-19. Segundo justificou o Comité Conjunto de Vacinação e Imunização britânico, citado pelo The Guardian, “o elevado nível de proteção proporcionado pela primeira dose sugere que vacinar inicialmente um maior número de pessoas com uma única dose evitará mais mortes e hospitalizações do que vacinar um número menor com duas doses”. Além disso, “os atrasos na administração de uma segunda dose de vacina até 12 semanas não deveriam afetar a proteção, pelo contrário”. Uma decisão publicamente apoiada pelo epidemiologista chefe Chris Witty – “para que mais pessoas possam receber a sua primeira dose o mais rapidamente possível.”
Mas o debate não está tão calmo do outro lado do atlântico, onde a a reação de Anthony Fauci, considerado o maior especialista americano em doenças infeciosas, não foi tão entusiasta, adiantando apenas que “embora fosse possível, ele não seria a favor”.
Há, no entanto, algumas vozes que se lhe opõem, como fizeram saber Robert M. Wachter, presidente do departamento de Medicina da Universidade da Califórnia, e Ashish Jha, o reitor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Brown, em artigo de opinião no The Washington Post – ambos a defenderem a mesma ideia: “é altura de considerar adiar a segunda dose”.
Como argumentam, as restrições de fornecimento, estrangulamentos na distribuição e centenas de milhares de novas infeções diárias rapidamente os fizeram alterar a sua posição sobre a administração das vacinas contra a Covid-19. “Centenas de milhares de pessoas estão a ser infetadas e milhares estão a morrer todos os dias. Qualquer pessoa de alto risco que não esteja vacinada hoje pode ser infetada amanhã e morrer dentro de um mês. Mas estamos a reter metade das doses em reserva para que as pessoas recebam as suas segundas doses.”
Porém, para a FDA, é uma alteração que não se põe para já: “É atualmente prematuro sugerir alterações nas doses ou nos calendários aprovados pela FDA para as vacinas. Estas sugestões não se baseiam solidamente nas provas disponíveis. Sem dados apropriados para apoiar tais mudanças na entrega de vacinas, corremos um risco significativo de comprometer a saúde pública, minando os esforços históricos de vacinação que estão a ser feitos para proteger a população da covid-19”, disse a agência numa declaração.
“As pessoas podem assumir que estão totalmente protegidas quando não estão, e consequentemente alterar o seu comportamento para assumir riscos desnecessários. Sabemos que algumas discussões sobre a alteração do calendário ou da dosagem são baseadas na crença de que mudá-las pode ajudar a população a obter mais vacinas mais rapidamente. No entanto, fazendo alterações que não são apoiadas por provas científicas adequadas podem, em última análise, ser contraproducentes para a saúde pública”.