“Será desta que eu vou morrer?” A pergunta começou a desenhar-se no pensamento de Tiago Dinis assim que foi internado nos cuidados intensivos do Hospital de São João, no Porto. Aos 31 anos, nunca antes se tinha confrontado com o medo da morte. “Tive malária três vezes, quando fazia voluntariado na Tanzânia, mas não senti tanto receio porque havia um tratamento eficaz. Agora, não sabia o que me podia acontecer se piorasse”, confessa. “Eu temi pela minha vida.”
Tiago Dinis está na faixa etária abaixo dos 40 anos, aquela que soma cerca de 45% do total de infeções confirmadas em Portugal, o equivalente a mais de 110 mil pessoas. No entanto, representam apenas 4% dos doentes atualmente internados com Covid-19 e, entre os mais de quatro mil mortos contabilizados no País, somente cerca de uma dezena tinha menos de 40 anos.
Apesar dos números mais ou menos tranquilizadores, Paulo Rodrigues, diretor do Serviço de Infeciologia do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, deixa um alerta: “Existe a ideia de que os sub-40 nunca sofrem com a doença, mas nem sempre é assim.” Também Tiago Dinis partilhava dessa ideia. “Se me perguntassem há três meses, diria que não me importava de apanhar o vírus, porque achava que seria como ter uma gripe”, afirma.
Paulo Rodrigues considera “relativamente frequente” haver pessoas abaixo dos 40 anos internadas, sobretudo quando sofrem de obesidade, diabetes ou neoplasia. Entre os mais de 700 doentes hospitalizados no Beatriz Ângelo desde o início da pandemia, oito ou nove teriam menos de 30 anos. Destes, “metade tinha comorbilidades [outras doenças]; os restantes eram saudáveis; e pelo menos dois tiveram de ser ventilados”, mas doentes abaixo dos 40 “terão sido muitos mais”, calcula. “Em termos percentuais, são poucos, mas como há muitos infetados, acabam por ser muitas pessoas em números absolutos”, defende. Esta semana, estima que estejam seis ou sete doentes abaixo dos 40 internados em Loures.
Tiago Dinis sempre teve precauções e acredita que se terá contagiado durante as férias de verão, passadas com os pais e a namorada. Os quatro ficaram infetados ao mesmo tempo, e a confirmação do diagnóstico chegou no final de agosto. Apesar de a mãe ter 62 anos e uma doença autoimune e de o pai, de 68 anos, sofrer de diabetes e hipertensão, ambos recuperaram em casa. A namorada manteve-se assintomática. Só a saúde de Tiago se agravou, ao ponto de a febre nunca baixar totalmente e de a tosse persistente lhe dificultar a respiração.
Quando voltou às urgências do São João pela segunda vez no espaço de quatro dias, depois de lhe fazerem uma nova TAC aos pulmões, a decisão foi imediata: interná-lo nos cuidados intensivos. “Fiquei aterrorizado”, recorda. “Não faltavam fios à minha volta, cateteres, elétrodos… E as pessoas todas equipadas com os fatos pareciam saídas de um filme de terror”, descreve o comercial.
Passou sete dias nos intensivos, cinco deles com o apoio de oxigénio de alto fluxo, mas não precisou de ser ventilado e esteve sempre consciente. Seguiram-se seis dias de internamento na enfermaria.
Voltou para casa ainda positivo, o que o obrigou a mais quatro semanas de isolamento. Tiago Dinis perdeu-lhes a conta, mas calcula que tenha feito, pelo menos, 15 testes até ter alta, mais de um mês e meio após o diagnóstico.
Choque psicológico
“Ainda não estou a 100%”, admite. “Os sintomas desapareceram, mas o paladar está um bocadinho diferente, e a fadiga muscular e o cansaço não foram completamente embora.” Tiago Dinis vai continuar a fazer exercícios respiratórios, em casa, durante os próximos quatro ou cinco meses. “A parte psicológica demora mais um bocadinho… Fiquei com muitos problemas de ansiedade e estou a ser acompanhado por uma psicóloga”, revela. “O que estou a trabalhar nas consultas é viver no presente, porque o medo de morrer e de ficar com alguma sequela tornou-se muito forte.”
O coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos I e IV do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, António Pais Martins, chama-lhe um “quase stresse pós-traumático”. Nas consultas de acompanhamento dos doentes que estiveram nas UCI que coordena, é habitual serem relatados casos de pesadelos e insónias, dificuldades de concentração ou de memorização e aumento da irritabilidade. “É particularmente penoso para os mais jovens”, justifica.
Tiago Dinis identifica um único fator de risco que poderá ter sido determinante para agravar o seu quadro: “Eu tenho peso a mais para a minha altura. É a única coisa fora do normal.”
O intensivista António Pais Martins não hesita em colocar a obesidade entre os principais fatores de risco na faixa etária entre os 20 e os 40 anos, mas ainda não existe evidência científica que explique porquê.
“O excesso de peso talvez só seja ultrapassado pelo tabagismo, enquanto fator de risco, mas também são agravantes ter diabetes, hipertensão e, eu acrescentaria, ser do sexo masculino”, elenca Pais Martins. Desde o início da pandemia, dos 237 doentes acompanhados nos cuidados intensivos do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, nove (3,8%) tinham entre 20 e 40 anos, cinco dos quais tiveram de ser ventilados. E nem sempre é fácil encontrar explicações para os quadros agravados nos mais jovens.
Em maio, cientistas norte-americanos alertavam para a ocorrência de casos – muito raros – de doentes na faixa etária dos 20 anos que sofriam de síndrome inflamatória multi-sistema (MIS, na sigla inglesa), que provoca a inflamação dos vasos sanguíneos e que começou por ser detetada apenas nas crianças. “Existem casos documentados de doentes que, sem apresentarem fatores de risco acrescidos, evoluem para doença grave”, constata Pais Martins.
Recuperação lenta
“Não faz sentido nenhum eu ter tido o que tive. Fazia milhares de quilómetros por ano de bicicleta, praticava musculação, ténis, corria, não tenho problemas respiratórios. Nem sequer uma alergia, nada.” Vera Resende não consegue explicar como é que, aos 37 anos e com um estilo de vida saudável, uma pneumonia bilateral grave, causada por SARS-CoV-2, a levou até à Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santa Maria da Feira, onde também trabalha como ortopedista.
Tudo começou com a perda do olfato, no dia de Páscoa, seguida de uma semana durante a qual Vera se convenceu de que estava com uma gripe. Quatro dias mais tarde, a médica dava entrada nos cuidados intensivos com anemia, redução de plaquetas e linfócitos no sangue, alterações neurológicas, hepáticas e trombóticas, além de um cansaço extremo que a impedia de andar mais de dois metros.
Ligada a uma máquina de alto débito, Vera nunca esteve em coma induzido, mas revela ter muito poucas memórias dos seis dias passados nos intensivos. As dores de cabeça incontroláveis e a paralisia temporária do braço e da perna direitos são a recordação mais viva que traz consigo.
A médica revela que “a recuperação que se seguiu foi muito lenta e difícil”. Os tão esperados resultados negativos chegaram no fim de maio, mas não vieram acompanhados da energia à qual a ortopedista estava habituada. “Felizmente, estava a viver num piso térreo, porque, nessa altura, nem subir escadas conseguia.”
O coordenador da Unidade de Medicina Interna do Hospital CUF Porto, Paulo Bettencourt, tem-se confrontado com a chamada “cauda da doença” em muitos jovens. Cansaço, falta de ar e desconforto são algumas das limitações referidas pelos doentes.
“Ainda é cedo para tirarmos conclusões, mas cerca de um terço dos infetados da primeira vaga, que teve doença moderada, tinha sequelas pulmonares ao fim de quatro meses, o que não quer dizer que elas tivessem significado clínico, ou seja, podiam não causar doença, nem o doente queixar-se delas”, explica.
Não o surpreendem, assim, os resultados preliminares de um estudo realizado no Reino Unido. A investigação coordenada pela Perspectum está a analisar os dados clínicos de 500 pessoas saudáveis, com uma média de 44 anos, que mantinham sintomas como fadiga, confusão mental, falta de ar ou dor, ao fim de quatro meses de infeção. Analisadas as primeiras 200, quase 70% apresentam lesões ligeiras num ou vários órgãos, como os pulmões, o coração, o fígado ou o pâncreas. O próximo passo será analisar se as sequelas se mantêm, se se agravam ou se desaparecem.
A energia de Vera Resende acabaria por voltar ao volante da bicicleta, com persistência, a ajuda de três amigos e uma meta muito específica: “Tinha decidido fazer os caminhos de Santiago de bicicleta, que são mais de 600 quilómetros, e acabei por conseguir fazê-los em oito dias, no final de agosto.
Apesar de ter recuperado completamente, Vera revela que algumas complicações, como a anemia, só se resolveram em outubro. “A expressão ‘isto é só uma gripe’ nunca mais passou pela boca das pessoas que me conhecem e que sofreram comigo.”
Demasiado cedo para saber
“Toda a gente ficou de boca aberta quando soube que eu estive nos cuidados intensivos”, conta Ricardo Teixeira, 33 anos. Praticante de artes marciais e adepto de ginásio, sempre foi saudável. “O meu único problema era ter um ligeiro excesso de peso”, diz. Com 1,90 metros de altura, pesava 115 quilos, mas perdeu sete durante os 13 dias de internamento.
O empresário começou por pensar que estava com gripe, mas, quando soube que tinha testado positivo para a Covid-19, já o seu estado de saúde se tinha agravado. A febre, a tosse e a dor de cabeça levaram-no ao Hospital CUF Porto. Tinha a preocupação de ter infetado a mãe, de 63 anos, mas a matriarca manteve-se assintomática.
Recebeu alta no dia 9 de novembro e tentou regressar ao ginásio na semana passada. “Senti que a resistência não é a mesma. Como faço atividade muito intensa, canso-me mais rapidamente.” Mas não duvida de que vai recuperar.
O infeciologista Paulo Rodrigues é cauteloso no momento de elencar as possíveis sequelas da doença. “Já se começa a descrever a hipoxia [baixa de oxigénio no sangue] com esforço, a fibrose pulmonar e problemas relacionados com o sistema nervoso, como alterações do sono ou dificuldades de concentração, mas alguns destes sintomas são comuns em doentes que estiveram internados nos intensivos”, nota. No entanto, não tem dúvidas: “Certamente, haverá sequelas. A maioria das doenças infeciosas tem-nas, mas ainda não houve tempo para as estudar.” E, “mesmo que só 5% dos infetados venham a sofrer com elas, serão muitos milhões e será preocupante”, antecipa.
Habituado a trabalhar por turnos, Bruno Lopes pensou que as fortes dores de cabeça, sentidas no início de abril, refletiam as noites mal dormidas. Mas, dois dias mais tarde, já com febre e falta de ar, o vigilante, de 35 anos, testou positivo à Covid-19, acabando por chegar, em menos de 48 horas, aos cuidados intensivos do Hospital de São João, no Porto, onde ficou internado 20 dias. “Nunca pensei que me safasse de apanhar isto. Só não achei que me atacasse desta maneira: não conseguia fazer inspirações completas, tinham de ser curtas e rápidas. Nessa altura, até ganhei uma pequena arritmia”, conta.
Ao entrar acordado nos cuidados intensivos, perguntaram-lhe se queria participar num teste que consistia em utilizar o sistema ECMO (Oxigenação por Membrana Extra-corporal), uma técnica de suporte vital que, neste caso, evitou o coma induzido e a ventilação invasiva. A ECMO permitiu a Bruno nunca perder a mobilidade dos membros superiores, que treinava regularmente numa pedaleira de mãos, bem como falar com a família, ao telefone, todos os dias. “Mesmo assim, se tivesse de fazer um pequeno esforço, faltava-me logo o ar. Achei que podia não sair dali, mas a gente, à família, diz sempre que está tudo bem, não é?”
Aos 20 dias na UCI seguiu-se uma longa recuperação, durante a qual reaprendeu a andar e a respirar. “O primeiro duche que tomei foi na enfermaria, ainda de cadeira de rodas e com oxigénio, mas, ao fim de três dias, obriguei-me a pôr-me de pé e ir à casa de banho. Eram 15 metros de distância e tive de me agarrar a meio, porque não aguentava.”
Uma das consequências físicas provocadas pelo internamento é a chamada miopatia dos cuidados intensivos. “Uma fraqueza generalizada que surge depois de vários dias de cama, a receber corticoides, sedativos, relaxantes musculares ou outros medicamentos, o que tem uma repercussão muscular enorme. Os doentes, muitas vezes, têm de reaprender a andar ou a levar uma colher à boca”, explica o intensivista António Pais Martins. Ao mesmo tempo, “sabe-se que a probabilidade de sofrer de insuficiência cardíaca e renal, por exemplo, está aumentada nos doentes que estiveram em estado crítico”, acrescenta.
Os médicos não conseguem encontrar explicação para a intensidade com que a Covid-19 se manifestou em Bruno. Ainda assim, uma TAC e alguns exames revelaram que, à partida, o segurança recuperou totalmente e não apresenta sequelas. Quando pensa no Natal que se avizinha, Bruno é perentório: “Este ano, já disse à minha mulher que passamos só os três. Mais vale passar um ano o Natal sozinho do que nos anos seguintes não o passar com ninguém.”