Um estudo realizado por uma equipa de investigação da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto alerta para a má qualidade dos dados fornecidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS) à comunidade científica relativamente à Covid-19 no País.
A investigação, publicada na última quinta-feira no Journal of Epidemiology and Community Health , teve em conta duas bases de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), disponibilizadas pela DGS a investigadores, no fim de abril e início de agosto deste ano. As informações a que a equipa teve acesso – que dizem respeito apenas a uma parte do SINAVE, a que é preenchida pelos médicos – foram estudadas quanto à sua qualidade e integridade e, a partir delas, percebeu-se que existem vários erros, inconsistências e informações em falta nos dois conjuntos de dados enviados, os únicos permitidos pela DGS, assim indica o estudo.
Por exemplo, algumas variáveis e o formato de dados usados na base de agosto foram diferentes dos de abril. Além disso, de acordo com a equipa, mais de quatro mil casos incluídos no primeiro conjunto não foram tidos em conta na base de dados de agosto e houve até informações diferentes para os mesmos doentes, em milhares de casos.
No primeiro conjunto de dados, por exemplo, 40% dos doentes com Covid-19 estavam identificados como não tendo qualquer doença cróncia antes da infeção pelo coronavírus mas, no conjunto de dados de agosto, essas pessoas (mais de 8 mil) foram apontadas como não se sabendo se tinham doenças crónicas ou não. “O principal problema é, realmente, o facto de estes dados serem muito incompletos, mas, por exemplo, a forma como os formulários são feitos também está errada: um médico não saber se o doente tem uma doença é diferente de ele saber que o doente não tem essa doença. Há situações que são logo vistas como um “não” quando deviam ser um “não sei””, explica à VISÃO Cristina Costa Santos, investigadora do CINTESIS, professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e primeira autora do estudo.
No conjunto de dados de abril, 90% dos casos não tinham informações disponíveis relativamente às variáveis “data do primeiro teste positivo” e “caso que envolveu tratamento nos cuidados intensivos” e, no conjunto de dados disponibilizados em agosto, a percentagem de casos com falta de informação relativa à data do primeiro teste positivo ainda era de 90%.
A equipa revela, também, inconsistências no que diz respeito ao número de casos e mortes provocadas pela Covid-19 no conjunto de dados de agosto, relativamente aos relatórios publicados diariamente pela DGS. Em alguns meses, o número de doentes é muito inferior ao revelado nos boletins diários mas, noutros meses, esse valor é bastante maior. Em maio, o número de mortos assinalado pelo SINAVE é metade do que foi conhecido publicamente. Além disso, estes dados indicam, ainda, que em junho não houve mortes por covid-19, quando se sabe que o número ultrapassou os 100.
De acordo com a equipa, a baixa qualidade dos conjuntos de dados disponibilizados relativamente à Covid-19 em Portugal faz com que outras investigações realizadas a partir destas informações (pelo menos 50 grupos de investigação receberam as bases de dados fornecidos pela DGS) não sejam fidedignas. De acordo com a investigadora, já existem pelo menos três artigos científicos publicados que utilizaram estes dados e, num deles, os seus resultados ficaram claramente distorcidos devido à sua fraca qualidade. “Gerar evidência científica que pode não estar correta é perigoso e fornecer estes dados assim à comunidade científica não é uma boa ideia”, afirma a investigadora.
Com estes dados, não é possível realizar uma investigação que ajude a tomar boas decisões e, por isso, era necessário envolver os cientistas de dados neste processo
A Diretora-Geral da Saúde já reagiu às críticas dos cientistas, referindo, durante a tarde de segunda-feira, que a prioridade neste momento é detetar doentes e isolar contactos e que os dados fornecidos pela DGS à comunidade científica ” não são dados de investigação, mas sim de vigilância epidemiológica”. Por isso, há parâmetros que vêm preenchidos pelos médicos e outros não. “Para efeitos de vigilância epidemiológica queremos vigilância rápida, que nos permita acompanhar a pandemia e tomar medidas. Essa é a função principal: vigiar para agir. Para os estudos mais completos contamos com a rede académica”, explica a Diretora.
“Sim, a vigilância epidemiológica deve ser o primeiro objetivo dos sistemas de vigilância”, concorda a investigadora. “Mas ter dados suficientes e de qualidade que sirvam de base à tomada de decisões, mesmo políticas, era essencial, principamente porque falamos de uma pandemia sobre a qual não se conhece quase nada em termos científicos. E com os recursos que a DGS tem neste momento, isso não é possível. E é grave”, afirma.
De acordo com Cristina Costa Santos, vários cientistas de dados portugueses ofereceram-se para auxiliar a DGS em todo o processo, desde a recolha dos dados até ao seu processamento, para se conseguirem obter informações de qualidade para análise e investigação, mas garante que essa ajuda nunca foi aceite. “Com estes dados, não é possível realizar uma investigação que ajude a tomar decisões boas e mais imediatas e, por isso, era necessário envolver os cientistas de dados neste processo de criar uma cultura de dados de vigilância que ajudasse a controlar de forma eficaz a pandemia”, explica a professora.
Apesar desta aparente tensão, Graça Freitas garante que a relação das autoridades de saúde com os cientistas é “excelente” e realçou o seu bom trabalho na luta contra a covid-19. “A apreciação dos dados é muito importante: ver se as bases de dados estão corretamente preenchidas e que parâmetros têm menos informação.”