As imagens estão ainda bem presentes na nossa memória. Dezenas de caixões empilhados a aguardar vaga nas valas comuns que se abriram na zona oeste da cidade brasileira de Manaus. A tragédia confirmada na capital do vasto estado do Amazonas era tal que vimos até o prefeito, Arthur Virgílio Neto, em lágrimas a clamar calamidade. Afinal, onde antes se faziam 30 funerais por dia passou a ser preciso arranjar lugar para enterrar 100 pessoas. A culpada, ali como em tantos locais do mundo, era a Covid-19.
“Se tivessemos feito quarentena tinhamos conseguido evitar isto. Isso é certo”, prosseguia o mesmo Virgílio Neto, em declarações à Folha de São Paulo. Nessa altura, sublinhou, já tinham ultrapassado o ponto de barbárie em que o médico decide que salva o doente jovem e deixa morrer o mais velho. Eram os tempos em que o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, ainda apregoava alto e bom som que a Covid-10 era só “uma gripezinha”. Isto apesar de o sistema de funerais em valas comuns se ter prolongado para lá do que se poderia imaginar – as trincheiras, como as apelidou a prefeitura local – e só ter sido suspenso em agosto.
Menos de meio ano depois daqueles dias negros, a contabilidade oficial aponta que mais de metade da população já foi infetada pelo vírus da pandemia. E isso, assinalam os autores de um estudo ainda a aguardar revisão científica, poderá querer dizer que ali está a maior taxa de prevalência do mundo. Segundo alegam investigadores do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, entre 44 a 66% da população esteve infetada, desde que a cidade detetou o primeiro caso, em março. “Isso explica porque agora a mortalidade diminuiu drasticamente. É isso que estamos a dizer”, sublinha Ester Sabino, a responsável do estudo, citada pela revista do MIT Technology Review.
Mas estas declarações a apregoar que aquele parece ser o primeiro sítio do mundo a alcançar a imunidade de grupo foram já refutadas pelo prefeito local. “O número de mortes continua muito alto”, contesta Virgílio Neto ao diário Amazonas Atual. “Dizer que baixou é uma mentira que interessa politicamente. Ao se dizer que agora está tudo bem ficamos, mais uma vez, longe de qualquer ajuda do governo”, rematou aquele responsável, conhecido pela sua posição muito crítica à atuação do Presidente brasileiro.
Recorde-se que Jair Bolsonaro defendeu, tal como Donald Trump, que o vírus acabaria por desaparecer só por si – e que um dos caminhos seria exatamente este de ter um número suficientemente grande de pessoas infetadas de forma a criar imunidade de grupo. E é isso, acreditam também os autores deste estudo, que está a acontecer em Manaus.
Estratégia não
Foi no início do mês que o Washington Post avançou que parecia confirmar-se uma reviravolta nos números naquela localidade. De um pico de 79 mortes em maio, a taxa oficial na cidade estava agora em duas ou três. Perante estes dados, Gabriela Gomes, matemática da Universidade de StrathClyde, assinala ainda que o estudo poderá ajudar a perceber melhor outra dúvida que os cientistas têm: saber quanto tempo dura a dita imunidade e ainda com que frequência o vírus tem capacidade para reinfetar as pessoas. Ou, como assinalam os autores do estudo: “Manaus pode atuar como sentinela para determinar a longevidade da imunidade da população e a frequência das reinfeções”.
Só que, sublinhe-se mais uma vez, a estratégia para ali chegar está longe de conseguir o aplauso geral. Como nota Florian Kramer, um imunologista do Hospital Mount Sinai, em Nova Iorque: “a imunidade comunitária via infeção natural não pode ser considerada uma estratégia. É antes um sinal de que o governo não conseguiu controlar um surto e se pagou com vidas perdidas”.