Naquela tarde, pouco depois do almoço, Tânia Contente reparou que o filho Rodrigo, então com seis meses, fazia um movimento estranho e incontrolado com a mão, abrindo-a e fechando-a sem parar. Ainda pensou que fosse resultado de uma vacina do Plano Nacional de Vacinação que ele tinha tomado de manhã, mas quando ligou para a linha de apoio Saúde 24 percebeu que não. “Perguntaram-me se o movimento parava quando eu lhe pegava na mão. Respondi que não.” Do outro lado, foram claros: “O seu filho está a ter uma convulsão. Coloque-o de lado que vai já uma ambulância.” A caminho do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, naquele dia de 9 de outubro de 2015, Rodrigo começou a ter o mesmo movimento descontrolado num dos pés e no lado esquerdo da cara. Entrou na unidade hospitalar por volta das 16 horas e só pelas 22 horas foi chamado para fazer uma TAC. O grave prognóstico foi então confirmado. “Disseram-me que o meu filho tinha tido um acidente vascular cerebral (AVC) gigante.”
Geralmente associado aos adultos, o AVC também atinge crianças. Segundo a Sociedade Portuguesa de Neuropediatria, o AVC está entre as dez primeiras causas de morte infantil, sendo tão comum como o tumor cerebral. Em Portugal, afeta 1 em 3 500 bebés, sendo a taxa de mortalidade de 4% a 5%. Em apenas um ano de vida, Rodrigo teve três AVC. Um problema que, no seu caso, resulta do facto de ter uma doença cerebrovascular rara – síndrome de moyamoya, caracterizada pela presença de uma rede anormal de vasos colaterais na base do crânio.
Apesar de o AVC infantil ser uma situação frequente, ainda há muito desconhecimento, até por parte dos profissionais de saúde, alerta Rita Lopes da Silva, neuropediatra do Hospital Dona Estefânia, uma das médicas que seguem Rodrigo, hoje com 4 anos. Por isso, diz que é necessário chamar a atenção das pessoas para os sinais de alerta, como se faz no caso dos adultos. “Estamos a tentar formar a sociedade, sobretudo os profissionais, para que perante três F – (falta de) força, (dificuldades na) fala e (assimetria na) face – recorram ao 112, como fariam em caso de um AVC de um adulto.”
Ter convulsões, como o Rodrigo, é um dos sinais de AVC. A falta de reconhecimento destes alertas é um grave problema que pode impedir que os casos sejam tratados atempadamente. Segundo Henedina Antunes, gastroenterologista pediátrica do hospital de Braga e responsável pela unidade de Vigilância Pediátrica para AVC da Sociedade Portuguesa de Pediatria, os diagnósticos demoram mais do que deviam – por vezes mais de 24 horas –, já que as famílias e os profissionais não reconhecem as manifestações iniciais e estas são atribuídas a doenças mais comuns, como a enxaqueca, a epilepsia e outras infeções. “As convulsões podem ser confundidas com uma crise epilética, a boca descaída pode ser encarada como brincadeira”, exemplifica a médica.
Vanessa Rodrigues testemunhou esse mesmo desconhecimento dos médicos. A fisioterapeuta, 34 anos, concretizou o sonho de ser mãe com o nascimento de Samuel, a 23 de julho de 2017, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mas aqueles que deviam ter sido dias felizes acabaram por ser um pesadelo. “O Samuel nasceu bem, era muito calmo e dormia a noite toda. Mas na terceira noite não deixou ninguém dormir, porque chorava de forma estridente.” Talvez por trabalhar na área da Saúde, Vanessa achou logo que havia algo estranho, mas as enfermeiras desvalorizaram o alerta da mãe, tal como o pediatra da ronda da manhã. “Eu tentei dar-lhe a chucha para ver se ele se acalmava, mas não conseguia pô-la na boca; ele debatia-se. O meu primeiro instinto foi pensar que isto é um reflexo exacerbado. Há qualquer coisa que não está bem. Mas ninguém me escutou. Se eles me tivessem escutado…” O diagnóstico de que o recém-nascido tinha sofrido um AVC perinatal – aquele que pode ocorrer a partir das 20 semanas de gravidez e até aos 28 dias de vida – só foi dado perto da meia-noite desse dia. Ou seja: 24 horas após o bebé ter começado a chorar e a mãe ter alertado para o facto de haver alguma coisa errada. “Depois de ele chorar a noite toda, às 7h00 da manhã acalmou e ficou imóvel. Só chorava quando lhe mexíamos. Depois das visitas, ao trocar-lhe a fralda, reparei que ele estava cianótico [roxo]. A neonatologia foi chamada, observou-o e perceberam que também fazia um nistagmo dos olhos [os olhos dançavam]”, recorda. Estes dois sintomas dão uma informação neurológica de convulsões. Por isso, e para perceberem o que se passava com o pequeno Samuel, fizeram-lhe uma TAC.
Tal como no caso dos adultos, quanto mais cedo for percebido o acidente vascular cerebral – o qual requer, grande parte das vezes, o recurso a um exame de imagem como a TAC ou uma ressonância magnética –, maiores são as hipóteses de se reverter o padrão e de se minimizar as sequelas, que nos casos mais extremos podem configurar paralisias cerebrais severas. “Mais de 50% dos bebés que sofrem um AVC ficam com sequelas”, garante Joana Lopes, pediatra do Hospital de Santa Maria. As dificuldades motoras e a epilepsia são as mais comuns, atingindo 60% de crianças, no primeiro caso, e 50%, no segundo. Apesar de Samuel ser hoje um bebé saudável, ficou com uma dificuldade motora. “Ele é canhoto e a mão direita ficou mais fechada. Também coxeia um bocadinho”, explica Vanessa que, apesar disto, garante: “Ninguém olha para o Samuel e diz ‘coitadinho’.”
Causas e riscos
Muitos destes AVC acontecem em recém-nascidos durante os primeiros dias de vida ou na reta final da gravidez. Foi o que sucedeu com Mateus, hoje com 8 anos. Teve um AVC dentro do útero da mãe. Apesar de não se conseguir definir uma data para o acidente, Rita Lopes da Silva assegura que este terá acontecido perto da altura do parto. A confirmação chegou apenas aos 9 meses, quando, depois de vários sinais, os médicos lhe fizeram uma TAC e uma ressonância magnética. Resultado: os exames mostraram que tinha tido um AVC quando estava para nascer. Ficou com uma deficiência na parte esquerda do corpo. “Ele tem um problema no braço, tem uma perna maior do que a outra e o pé virado para dentro. Desequilibra-se facilmente e cai muito”, explica a mãe, Miriam da Silva, 52 anos, que só se apercebeu de que algo estava errado com o filho por volta dos cinco meses. “Ele não se conseguia sentar e batia palminhas com a palma de uma mão contra as costas da outra”, conta, explicando que o seu maior receio é “o preconceito das pessoas, a rejeição”. “Sei que ele vai sofrer”, diz Miriam da Silva, falando dos 66% de deficiência do filho provocados pelo AVC.
Entre os AVC infantis, aquele que ocorre dentro do útero e até aos 28 dias de vida é o mais comum, explica Joana Lopes. Isto por juntar os fatores de risco da mãe aos do bebé. “A maior parte dos episódios deve-se a multifatores, por exemplo, a doenças autoimunes da mãe, como o lúpus, a infertilidade, tabagismos, consumo de outras substâncias, doenças da coagulação, entre outras”, refere. Há ainda, nota a especialista, outras situações que podem influenciar, como infeções na placenta, um parto feito muito tempo depois da rutura da bolsa de água ou uma extração mais difícil. “Depois existem os fatores de risco do próprio bebé. Se se tratar de uma gravidez de gémeos monozigóticos, o risco aumenta.”
Explicar aos pais o que originou a doença do filho continua a ser o capítulo mais difícil desta história. Esta é, sem dúvida, dizem as médicas, a pergunta mais frequente. “Nunca me explicaram nada”, considera Miriam da Silva que ainda hoje pensa se terá sido o toque que, na véspera do parto, a médica lhe fez para puxar o útero para baixo. Também para Vanessa Rodrigues, o mais complicado é não ter uma resposta para a pergunta: Porque é que isto aconteceu? “Até hoje não tenho respostas.” Só um grande ponto de interrogação. “Quando as águas rebentaram, eu comecei a ter tremores de frio, como se estivesse com febre”, recorda. Foram logo feitas análises ao sangue que revelaram não haver nenhuma inflamação mas, como já estava há algum tempo na maternidade e ainda não tinha conseguido ter a dilatação, acabaram por lhe fazer uma cesariana. “O facto de eu ter tido febre pode significar que algum coágulo meu se tenha desprendido e passado para o sangue dele”, teoriza, adiantando: “É só uma suspeita, mas foi a única coisa anormal que aconteceu…”
As doenças de coagulação são, de facto, um dos fatores de risco a ter em conta nos AVC perinatais. “É uma fase em que a mãe tem um risco de trombose mais elevado; o sangue mais facilmente coagula; há passagens de sangue através da placenta, onde a criança é alimentada; todas essas trocas aumentam o risco de formação de trombos. Há uma série de fatores, do ponto de vista da coagulação, que torna esta fase de maior risco para mãe e filho”, esclarece Rita Lopes da Silva que, além de Rodrigo, acompanha também o caso de Mateus.
É esta conjugação de fatores de risco da mãe e do filho que faz com que 70% a 80% dos AVC que acontecem nos primeiros meses sejam isquémicos – aquele que acontece por obstrução de uma artéria, o que impede a passagem de oxigénio para as células cerebrais que morrem. Os outros 30% são hemorrágicos, decorrendo do rompimento de um vaso ou de uma artéria. Estes últimos acontecem em regra por uma fragilidade ou por malformação vascular. Com o aumento da idade da criança, estes números mudam. “Numa criança de um mês ou até aos 18 anos, é tão frequente o isquémico como o hemorrágico”, afirma Rita Lopes da Silva. A explicação reside no facto de quanto mais velha for a criança mais fatores adultos de risco poderem existir – como hipertensão, diabetes, colesterol alto, hábitos de vida sedentários.
Causas variadas
Muitos dos AVC ocorrem dentro do útero ou em recém–nascidos. Outros acontecem ao longo da idade pediátrica. As razões para o derrame são variadas. Veja quais podem ser
No AVC isquémico
Estes AVC, que ocorre por obstrução de uma artéria, são geralmente provocados por doenças das artérias de causa inflamatória, pós-infeciosa, genética ou metabólica. Outras das situações de risco são as doenças cardíacas e alguns problemas hematológicos – anemia, células falciformes ou doenças que favoreçam a formação de trombos.
No AVC hemorrágico
Nos casos em que o AVC resulta do rompimento de um vaso ou de uma artéria, na origem estão quase sempre aneurismas, malformações vasculares, tumores cerebrais ou doenças do sangue.
Muitas vezes, os episódios de AVC repetem-se. Se no caso dos recém-nascidos é uma situação pouco comum, havendo 1% de hipóteses de repetição, já nas crianças mais velhas pode acontecer com mais regularidade: aí o risco pode chegar até 15% a 30%, segundo a neuropediatra Rita Lopes da Silva. Foi o que sucedeu a Rodrigo que teve três. No primeiro AVC, aos seis meses, perdeu parte da função motora do corpo; no segundo, aos 11 meses, ficou com o campo de visão afetado e, no terceiro, que aconteceu duas semanas depois, não houve sequelas, pois sucedeu durante o período de internamento da cirurgia a que teve de se submeter na zona da cabeça, por causa da síndrome de moyamoya, e foi controlado. Hoje está bem. “Ele corre e salta por todo o lado”, garante Tânia, apenas continua a tomar aspirina todos os dias à hora de jantar, e assim irá continuar para o resto da vida, para tornar o sangue menos espesso, fazendo-o circular melhor. Além disso, é acompanhado na fisioterapia, na neurologia e na oftalmologia. Tirando isso, e a cicatriz da operação, é uma criança sem qualquer sequela dos três AVC que teve.
sintomas
► Falta de força nos membros de um lado do corpo
► Dificuldade na fala
► Dor de cabeça
► Vómitos
► Convulsões
No entanto, muitas das consequências surgem só mais tarde, avisam os especialistas. Se um bebé tem um AVC aos 3 meses, pode não ter manifestação nenhuma de sequelas e estas só aparecerem mais tarde, quando começar a querer agarrar em objetos, a falar ou a andar. O mesmo acontece com a epilepsia, que pode ser o primeiro sintoma visível da doença, ou surgir como causa do acidente anos mais tarde.
“Sempre me disseram que a capacidade de recuperação de um bebé é enorme. Mas o que pode ser hoje, pode não ser amanhã. Aliás, quando o Samuel começou a andar ele não coxeava tanto. Entretanto, piorou”, comenta Vanessa Rodrigues. Por isso, nota a médica Joana Lopes, é importante, além das consultas, apostar noutros apoios, como fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. Rita Lopes da Silva concorda e acrescenta: “Também deve haver um acompanhamento na medicina física e de reabilitação para capacitar os pais para potenciar o que é feito na reabilitação.”
Miriam da Silva percebeu a importância dos apoios ainda antes de os resultados da TAC e da ressonância magnética de Mateus confirmarem o cenário de AVC isquémico. As sequelas do acidente atrasaram, por exemplo, o processo de andar do filho que, entretanto, precisou de ter gesso nas duas pernas, durante 15 dias, para ganhar firmeza nos membros e conseguir manter-se de pé. “Ele começou a andar com dois anos e meio. A partir do momento em que começou a andar, começou também a falar. Sem qualquer explicação”, recorda a mãe que vai com o filho à fisioterapia três vezes por semana, de seis em seis meses, o qual continua a ter consultas de neurologia da Estefânia. “A nossa vida mudou radicalmente.” Mesmo assim, a família não ficou traumatizada com a doença. “Se eu fosse mais nova, voltava a engravidar”, garante. Vanessa também não mostra traumas, mas a atenção que Samuel requer dos pais nesta fase é tanta que a fisioterapeuta sabe que o desejo de voltar a ser mãe é, para já, difícil de concretizar. Também Tânia Contente assume essa dificuldade, mas isso não a impediu de, há nove meses, mesmo temendo que a doença de moyamoya pudesse ser genética, voltar a ser mãe, desta vez de Afonso, e de dar um companheiro de brincadeiras a Rodrigo que, apesar dos três AVC que sofreu, é uma criança feliz: não para quieto e adora brincar com o irmão.
Três dúvidas
Como se previnemos?
Metade das crianças que sofre um AVC tem uma doença de risco conhecida. Aconselha-se um acompanhamento regular em consultas da especialidade ou no médico de família
Um historial de AVC na família pode aumentar o risco de AVC na criança?
Sim, se ela for portadora de doenças genéticas de origem metabólica, do sangue ou da parede das artérias
Há risco de morte?
O risco de morte no AVC pediátrico é de 10%, mas as sequelas motoras, cognitivas e comportamentais podem atingir entre 60% a 70% dos casos