É mais um estudo a apontar o dedo aos números oficiais da pandemia, com as autoridades a serem acusadas de deixar casos de fora. Oficialmente, num grupo de países analisados pelo Financial Times (FT), a pandemia levou 77 mil pessoas. Mas, cruzando os vários dados disponíveis sobre mortalidade nesses países, há mais de 120 mil mortes por explicar. Mais: se o mesmo nível de subnotificação ocorresse um pouco por todo o mundo, o número global de aumentaria dos oficiais 201 mil para os 318 mil. E 90 mil mortes a mais são muitas mortes a mais…
O que fez então o FT para chegar a estes números? O método é simples: compararam-se as mortes por todas as causas, nas semanas em que já havia surto declarado num determinado local, em março e abril deste ano, com a média do mesmo período entre 2015 e 2019. Ao todos, acabaram por dar com mais de 120 mil mortes. O valor representa um aumento de 50% em relação à média desses locais nos anos anteriores. A única exceção, nos países analisados, é a Dinamarca.
Sabemos que a precisão das estatísticas oficiais é, obviamente, limitada pela eficácia com que um país está a testar pessoas para confirmar casos. Alguns países, incluindo a China, já reviram, mesmo, o número de mortos pela doença. Outros não o fizeram. Olhe-se então com mais detalhe para os dados agora revelados: naquele comparativo, as mortes totais aumentaram 60% na Bélgica, 51% em Espanha, 42% na Holanda e 34% em França. Será que a pandemia não teve mesmo nada a ver com isto?
O que pode explicar esta subnotificação ?
É certo que algumas dessas mortes podem ser o resultado de outras causas além da Covid-19. Por exemplo, porque as pessoas evitam ao máximo ir ao hospital, por algo que consideram menor. Mas a diferença é tão grande nos locais onde houve grandes surtos da doença que só muito dificilmente os dois factores não estão relacionados.
Oiça-se David Spiegelhalter, especialista em estatística e professor da Universidade de Cambridge. Foi um dos especialsitas a sublinhar que, por exemplo, as contagens diárias no Reino Unido eram “muito baixas” porque apenas incluíam as mortes hospitalares.
“Há ainda muitas perguntas para responder sobre as mortes que não receberam a informação de Covid-19 no atestado de óbito. Mas é impossível não considerar que estão de alguma forma ligadas à pandemia”, segue aquele analista.
Há ainda outra explicação: estas mortes extra são muito mais pronunciadas nas zonas com surtos mais graves do Sars Cov-2, logo pela razão simples de ter os mecanismos de notificação já muito sobrecarregados.
Veja-se o exemplo da província de Guayas, no Equador. Entre 1 de março e 15 de abril, foram notificadas apenas 245 mortes oficiais relacionadas com a Covid-19. Mas, analisando os dados sobre o total de mortes, nota-se que morreram cerca de 10 mil pessoas a mais agora do que nos últimos anos. Um aumento de 350 por cento!
Passou-se o mesmo na Lombardia, norte de Itália, epicentro do pior surto na Europa. Há mais de 13 mil mortes por explicar, um aumento de 155 por cento do que a média dos últimos anos. Um valor também muito mais alto do que as oficiais 4 300 mortes na região.
Se olharmos só para a cidade de Bérgamo, o aumento é ainda maior – qualquer coisa como 464 por cento. É seguida, a nível internacional, por Nova Iorque, nos EUA (mais de 200 por cento) e ainda Madrid, em Espanha, onde se verificou um aumento de 161 por cento. Em Jacarta, capital da Indonésia, os dados mostram um aumento de 1 400 mortes. Um valor que é só 15 vezes maior do que o número oficial de 90 mortes por Covid-19, no mesmo período.
O caso dos lares de idosos, dos desastres de viação e dos acidentes profissionais
“Se queremos compreender a forma como os diferentes países foram afetados pela pandemia, e como ela afetou a saúde da sua população, a melhor maneira de o fazer é mesmo contar o excesso de mortes”, concorda David Leon, professor de epidemiologia na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Muitos especialistas têm também andado a alertar para a subnotificação de casos em lares de idosos. “Poucos países parecem estar a fazer testes sistemáticos nestes locais”, assegura outra investigadora a estudar o assunto, no caso Adelina Comas-Herrera, da London School of Economics.
Claro que os números oficiais podem também ser menores por outras razões. A nota é feita por Markéta Pechholdová, professor de demografia na Universidade de Economia, Praga. É que, com países inteiros em confinamento reduzem-se também as mortes em desastres de carro e em acidentes profissionais.