Chegou o carteiro!
Cada vez que escrevo um texto é anunciado como uma nova carta da China. É interessante esta forma tradicional que eu tenho de comunicar. Existem as pessoas que escrevem textos, as que postam coisas e depois há as pessoas como eu que não se sabem expressar se não através de longas e manuscritas missivas enviadas por correio. Dada esta forma bastante epistolar de chegar às pessoas, pelo sim, pelo não talvez seja melhor abrirem esta carta com um lenço de papel e desinfetarem bem as mãos depois disso. Posto isto, não sei se me hei-de sentir um carteiro, uma Soror Mariana Alcoforado que apenas pode fazer uso do punho e letra para se libertar da sua perene clausura ou se serei um daqueles segmentos de revistas que dizem receber cartas com perguntas ridiculamemte pertinentes como se o Google ainda não tivesse sido inventado para esse mesmo fim.
Creio que um pouco de tudo isto, mas mais esta última porque foi precisamente uma dessas pessoas que me fez chegar uma extensa e sentimental missiva, talvez por reconhecer em mim alguma autoridade em matéria de capacidade de viver confinado. São quase 10 semanas, mas felizmente está tudo bem em termos de saúde mental, obrigado. Cheira aqui um bocado a fumo e entraram uns senhores de capacete a espezinhar a porta e a disparar água para a cozinha, mas acho que podemos continuar.
Dizia que uma pessoa me fez chegar uma emocionada missiva que se pode resumir nas seguintes palavras: “então e as máscaras?”. Esta carta foi escrita por uma leitora à qual dei o nome fictício de srª Maria da Graça. “Querida srª Maria da Graça, gostei muito da sua carta, eu também nutro um carinho muito grande por si, sei que vivemos uma situação nova e complicada e que não é fácil para ninguém. Aliás, congratulo-me pelos seus esforços em abordar todo e qualquer objecto do modo mais asséptico possível. Terei todo o prazer em tomar esse chazinho consigo no dia em que pudermos deixar de medir em metros e centímetros os nossos níveis de convivência. Quanto às máscaras, no fundo, é como tudo. Cada qual vai para a guerra com os recursos que tem e não há muito mais a dizer sobre isso. Até porque aqui não há aquela história de deverem usar uns e outros não. É que o vírus age da mesma forma que, por exemplo, a Segurança Social nos cobra dívidas. Contrai-se o vírus da dívida sem se manifestar qualquer sintoma nem se perceber bem como. Ou é do Imposto de Selo ou é porque passou um prazo qualquer, há inúmeras formas de transmissão. E depois é uma carga de trabalhos para o tirar de cima. O nosso sistema imunitário fica bastante saturado de lutar em vão contra montanhas de emails e horas de espera em repartições. Por isso, o mais seguro, havendo possibilidade de o fazer, é desconfiarmos todos uns dos outros e usarmos máscaras, porque as partículas não olham a orifícios para se lançarem nem para se introduzirem. Mas fique descansada, Srª Maria da Graça porque francamente está a realizar um excelente trabalho e na próxima já estaremos todos muito mais atentos e preparados para lidar com isto. Despeço-me com um abraço apertado o mais metro e meio possível”.
Isto anda tudo muito agitado na medida em que as pessoas desataram a fugir da Europa para cá, nomeadamente os estudantes chineses, e o vírus voltou a crescer deste lado. Territórios como Macau e Hong Kong têm já muito mais casos do que em janeiro e fevereiro, embora não se preveja (se é que alguém pode prever alguma coisa) que a coisa atinja outras proporções devido às medidas apertadas. De maneira que todos nós, animais selvagens que já nos atrevíamos a explorar a selva lá fora, nos vemos agora obrigados a preferir o cativeiro, porque ninguém está para morrer na praia após tão longo sacrifício. Nesta batalha não há melhores nem piores, pode haver é mais experientes na matéria e com um pouco mais de recursos. E também mais destemidos ou mesmo a transbordar confiança.
Querem mais um pandémico paradoxo para a colecção? Aí vai. Aqui na China, tirando escolas e um ou outro serviço, já está tudo a carburar normalmente. Mas nota-se que andamos todos muito desconfiados, muito a apalpar terreno, a evitar misturas, centro comercial praticamente vazio ao fim de semana, nem à vontade e muito menos à vontadinha. Apesar do uso obrigatório de máscara, medição da temperatura em tudo o que é lugar, bem como do “cartão da quarentena” ou do código QR para comprovar ao grande, aos pequenos e a todos os irmãos em geral há quanto tempo estamos na cidade, no mínimo 15 dias para andar aí à solta, mesas de intervalo nos restaurantes, etc., ainda assim nota-se que todos preferem programas que não envolvam grandes interacções.
Em Portugal, que ainda a coisa vai no adro, parece a música dos Despe & Siga. Tudo Para a Costa cheios de pica, aí vou eu, 125 azul, à minha maneira. Mais nada, o sol é para se curtir e curte-se bem é com tudo ao molho, se não até parece que nem se curtiu nada. De resto, estão lá os polícias para vos mandar para casa como se fossem as mulheres dos bêbados e o pessoal médico para fazer baixar a curva do surto sozinhos, pelo menos enquanto não começarem a disputar os ventiladores com os pacientes para se conseguirem manter em pé. Quarentena em part-time. Não é paradoxal, é uma pandemia mundial.
Continuando. Estas alturas em que estamos em baixo são sempre boas por dois motivos. Primeiro, porque começa a ser cada vez mais difícil esgaravatar mais fundo. Os dias felizes com a família, a cultivar o nosso intelecto com livros há muitos esquecidos nas prateleiras, a exercitar o nosso corpo com toda a convicção, é tão bom fazermos tudo isto enquanto ficamos extremamente mais piruças a cada dia que passa. Só um momento. Pareceu-me ter passado aqui um telemóvel a voar que se esborrachou contra a parede. Duas vezes.
Não sei alguém nesta casa está desgovernado ou se foi o aparelho a pedir para ser passeado por sentir falta de energia solar. Deixem-me só escrever aqui na lista: fruta, legumes, desinfectante, álcool (sobetudo vokda) e telemóvel novo. Ok.
Depois, estas fases são boas porque descobrimos verdadeiramente quem são os nossos bons vizinhos e também os vizinhos que são verdadeiramente maus. Entre os primeiros estão aqueles que se prestabilizam para o que for necessário, ajudam nas compras, nalguma bricolage ou entabulam connosco amenas cavaqueiras de varanda a varanda. Do lado oposto temos vizinhos como os holandeses e outros que tais.
No caso dos governantes holandeses, têm muito esta recorrente mania de se apresentarem com uma fatiota toda limpinha e europeísta e depois revelarem uma forma muito extrema-direita de nos tratar. Infelizmente, consiste naquela conversa baratíssima do “eu não tenho nada contra até porque tenho imensos amigos portugueses, dá cá um abraço que eu adoro homens de bigode farfalhudo”, mas depois são invariável e incontidamente os primeiros a apontar-nos o dedo incriminador quando é preciso arranjar um bode expiatório qualquer. Nomeadamente, quando o assunto é guito, a culpa é sempre dos mesmos jagunços que só estão aqui a empatar, a tirar-lhes os empregos e a roubar-lhes espaço que eles poderiam aproveitar para encher isto tudo de tulipas ou papoilas. Uma grande salva de palmas ao bipolarismo europeu destes senhores que nos querem ver unidos, mas depois abrem a boca para lançarem a segregação e dizerem barbaridades ao nível do que só um burgesso chega a defender. Obrigadinho, amigos.
O nosso primeiro-ministro foi exemplar ao defender um vizinho e usou o termo “repugnante” para definir estas afirmações rasteiras nestes tempos que atravessamos, embora todo o português saiba que o que ele realmente quis dizer era que eles enfiassem essa converseta bem no fundo das suas comissões europeias. Fiquem descansados senhores europeístas governantes holandeses que se um dia precisarem de um ovo para fazer um bolo do espaço, de uma mortalha para os vossos cigarros de infusão ou até de um obrício para reparar alguma vitrine daqueles talhos que vocês têm espalhados pelas ruas de Amsterdão, nós estaremos cá para vocês sem rancores nenhuns, seus poçozinhos de virtudes.
Para isso e para continuarem a ser sobejamente arrumados quando o assunto é dentro das quatro linhas, que é a forma que os periféricos têm de se rirem por último.
Já o nosso primeiro-ministro é preciso reconhecer que tem estado impecável. Qualquer português consegue ser pródigo em apontar defeitos e em dizer como é que isto “havia de ser feito”, mas ao mesmo tempo nenhum português faria melhor se estivesse na sua pele e muito provavelmente assobiaria para o lado se o assunto fosse ter de estar no foco para ser criticado pelos outros.
Olhando para o panorama mundial, nomeadamente para a forma como alguns líderes estão a lidar com esta situação, é de ficar um pouco mais descansado com os governantes que temos. E com alguns vizinhos da onça que andam por aí é de ficarmos também ainda mais unidos. E pronto, está tudo bem com a quarentena e já estou um pouco mais calmo. Agora vou só ali dar comida ao relógio de parede e cantar os parabéns enquanto lavo as mãos para poder dormir descansado. Cuidem-se. Força, um abraço!