Marine Antunes, 29 anos, está em remissão. Foi dada como curada e apresenta-se sempre como “sobrevivente” e nunca como doente oncológica. Não teve alta hospitalar. Continua a ser seguida exatamente da mesma forma, com uma consulta anual em Coimbra. Há 13 anos que faz uma vida normal, depois de aos 13 anos lhe ter sido diagnosticado um linfoma não Hodgkin, localizado no mediastino. Para a autora do livro Cancro Com Humor, com dois volumes publicados (2013 e 2017) para desmistificar tudo à volta do cancro, esta quarentena forçada é uma continuação luxuosa do que já passou quando esteve internada.
“Nunca passei tanto tempo à janela: vejo o tempo desfilar, apanho sol, lancho na varanda e faço mais máquinas de roupa do que alguma vez fiz – ironicamente as tarefas domésticas passaram a ser atividades lúdicas. E, mesmo que as minhas emoções oscilem mais do que o costume, às vezes grito à janela um valente: “Vai para casa pá!”. Escondo-me a seguir no alpendre (mais pela emoção do que pela educação pelos pares). A verdade é que esta quarentena tem-me obrigado a refletir. E a ser grata, mais do que o habitual.
Apercebi-me de que nós, doentes oncológicos e sobreviventes, somos na verdade os mais bem preparados para esta pandemia. Percebi isso ao conversar com António Sala (também sobrevivente oncológico) em direto pelo Instagram no meu programa online Menina Estás à Janela: “Isto não é o caos, é a continuação de uma forma de estar resiliente que nós já conhecemos.” É incrível perceber que são os mais frágeis os mais corajosos. Que somos nós que mais precisamos que as pessoas FIQUEM EM CASA, mas somos também os que mais temos para ensinar.
Como é que nós, doentes oncológicos, encaramos esta pandemia? Fácil. Aprendemos, há muito tempo, a relativizar o caos e somos os maiores defensores da nossa casa, não só porque pertencemos ao grupo de risco mas porque já vivemos demasiado tempo em hospitais. Estamos fartos de almoçar em tabuleiros. Preferimos o luxo de jantar na varanda. A vida dá voltas, querido saudável amedrontado. Por isso, se ainda desmaias quando tiras sangue e consideras que o infortúnio maior da tua vida foi usares óculos, mete os olhinhos (mesmo que míopes) nos doentes oncológicos e aprende a olhar para esta quarentena como uma oportunidade e com a certeza de que poderia ser bem pior:
Podemos ficar finalmente em casa. Estivemos internados tanto tempo em quartos duplos ou, no meu caso, de seis camas (a dividir casas de banho com desconhecidos, numa porta que mal se fechava), que agora sempre que faço o meu xixi sem medo de me entrarem pela casa de banho adentro, sinto-me a maior diva deste mundo. É um luxo não ter de estar de cócoras, num agachamento forçado e de braço esticado a empurrar a porta, sempre pronta a gritar a lengalenga: “Está gente!” A quarentena permite um santo xixi. E não há nada que pague isso.
Não precisamos de comer pão fresco todos os dias e não percebemos porque têm as pessoas de sair, diariamente, de casa para o comprar. Durante muito tempo, recebemos à refeição aquele papo seco, embrulhado num saquinho de plástico, com muito pouca graça, por isso o pão congelado serve perfeitamente. Lembro-me de que guardava o pão (nunca me parecia apetitoso ao almoço,) na esperança de o comer mais tarde. Mas, há coisas que não melhoram mesmo que esperes.
Não nos entram médicos e estudantes de Medicina no quarto a cada 15 minutos. Acabou-se a invasão ao quarto e o “apalpanço” contínuo em todas as partes do corpo à procura de caroços, numa desconfortável caça ao tesouro, obrigando-nos a participar numa aula na qual nunca nos inscrevemos. Para mim, essa interação forçada foi uma das coisas mais difíceis do internamento. “Deslarguem-me as virilhas!”, era o que me apetecia berrar. Bem, pelo menos agora, posso sempre pedir ao Tiago que se vista de médico e que faça ele o exame de rotina. É bem mais interessante.
Acabaram-se as fugas durante a noite para ver televisão em paz. No meu tempo, não tinha televisão no meu quarto de seis camas. Numa divertida noite, eu e a minha companheira de quarto, tal e qual umas verdadeiras bandidas, saímos sorrateiramente, em bicos dos pés, até à sala de visitas para assistirmos ao filme das 21 horas. Resultado? Tivemos um problema com o meu soro, chamámos a enfermeira, levámos um raspanete e não vimos filme algum. Mas quem é que manda agora, quem é? Pois é, deito-me às 22 horas se quiser. Oh yeah.
É a primeira vez que estamos todos a viver o mesmo drama. Mesmo que não estejamos todos doentes com o vírus, existe a noção real de que todos, sem exceção, podemos facilmente ficar infetados. A ideia de que “acontece só aos outros” caiu por terra, e, enquanto doentes oncológicos, é confortante perceber esse reconhecimento de vulnerabilidade global. O estigma, o preconceito, o medo que sempre nos rodeou agora não faz sentido, pois não? Todos temos medo. Todos precisamos de ajuda.
Deixámos de receber visitas indesejadas. Ups… a vizinha maldisposta que adorava despejar o lixo emocional da semana não o pode fazer, porque isto é viral e a quarentena particular. Ficas à porta se quiseres e falas daí de fora, enquanto eu oiço um podcast, de phones na cabeça e com um sorriso nos lábios. Abençoada barreira.
Ninguém nos acorda às 8 da manhã para mudar os lençóis. Esta é talvez a regalia maior desta quarentena, comparada ao que vivi no internamento. Todo o santo dia, ainda o sol não tinha entrado no quarto, era atirada da cama para a cadeira de rodas, para que a minha cama fosse mudada. Acordava sempre assim, às vezes até chorava de agonia, porque as noites eram tão mal passadas que me sentia torturada por ser acordada quando finalmente estava a descansar. Ter uma cama só minha e decidir quando saio dela? Até tremo as perninhas com a sensação.
Será que as pessoas que tanto resistem em respeitar a quarentena, se apercebem do sonho que é “ficarmos internados” na nossa própria casa? Os barulhos que ouvimos agora são as músicas escolhidas por nós, o som da televisão da nossa série favorita, os miúdos que cantam, a guitarra que é tocada, as palmas à janela. Não há choros de outros quartos, não há máquinas a apitar, não há visitas a saírem dos quartos em prantos, não há lágrimas de doentes ao lado da nossa cama. Há a nossa cama e a nossa manta, com o nosso cheiro e a nossa alma.
Podemos fazer exercício à vontade sem medo de julgamento. No hospital, o único exercício que fazia, além dos passeios no corredor, era a contração abdominal para vomitar. Hoje, em cada 50 diretos do Instagram, 49 são de personal trainers a ensinarem como mexer o rabo. Temos uma panóplia de oferta online e o melhor é que podemos sempre desligar a câmara quando fazemos aquela flexão embaraçosa.
Tempo. Quando adoecemos, não há nada mais aterrador do que o medo de não termos tempo. E mesmo que os dias sejam iguais em horas e que a vida continue a andar, a quarentena oferece este tempo para conversar, ler, rir, projetar. Esse tempo, contado e esmiuçado é agora, de certa forma, oferecido e as casas encheram-se de gente e as pessoas têm tempo para pensar, para ouvir. Tempo para agradecer.