Há um antes e um depois. Antes, ficávamos imersos em jogos, séries e filmes de suspense, guerra e catástrofe. No final, cada um ia à sua vida com doses q.b. de dopamina e o efeito catártico de estar na pele do vilão, sem risco de fazer estragos na vida real. Depois, a ficção invadiu os nossos dias, à queima-roupa e por tempo indeterminado. Os termos “brutal” ou “viral” são usados com outra consciência e as expressões “contenção social”, “isolamento profilático”, “encerramento de fronteiras” e “estado de emergência” entranham-se na pele, nos órgãos e nos neurónios.
Imersos num cenário com contornos apocalípticos, a questão que se coloca a todos – os “nervosos” saudáveis, os patológicos e os que se desregulam pelo ritmo tecno acelerado e centrado no futuro – é aprender a lidar com um inimigo invisível que não distingue raças, classes nem continentes. Em tempos de Covid-19, a higienização do contacto físico, o silenciamento da atividade social e o confinamento prescrito em nome da sobrevivência podem ser tão ansiogénicos como estar num palco de guerra mas, asseguram os especialistas, é possível usá-los a nosso favor.
Carrascos de nós
A ansiedade é uma espécie de semáforo orientador que temos na cabeça e no corpo. Mentalmente convivemos com ela sob a forma de preocupação acerca do que pode vir a correr mal ou ter resultados incertos. É o clássico “E se… ?” nas pequenas e grandes coisas da vida: ser ou não capaz de apanhar transporte a tempo, pagar a casa, manter o emprego, falhar uma avaliação importante. Fisicamente, o corpo fica tenso e pronto a responder ao perigo, tal como há milénios: fugir dos predadores, ser caçador e não presa.
A ansiedade “é um marcador emocional em que cabem várias emoções em intensidades diferentes”, explica o psicólogo e psicoterapeuta António Norton. “O medo pode passar a terror, a zanga escalar até à cólera e ao ódio, por exemplo.” A resposta ansiosa é útil e adaptativa porque sinaliza uma ameaça, real ou imaginada, e aciona o sistema nervoso simpático, motor da ação para enfrentar o perigo ou fugir: o coração dispara, a pressão arterial também e a respiração fica ofegante. A ativação do cérebro primitivo, cujo lema é “agir primeiro (sistema límbico), pensar depois (córtex)”, e que nos permitiu sobreviver enquanto espécie, é contrabalançada pelas fases de bonança, acalmia, o chamado “descanso do guerreiro”, governado pelo sistema nervoso parassimpático.
Na mente de uma pessoa com perturbação ansiosa, o dia começa e acaba em estado de alerta. “O discurso tende a ser desorganizado, o olhar disperso e flutuante.” Uma distorção cognitiva que leva a percecionar o real com base em crenças irracionais que se manifestam por uma preocupação excessiva, cenários catastróficos e prejuízos na atenção e na memória.
O que a pessoa mais teme acaba por acontecer-lhe sob a forma de decisões e condutas precipitadas ou inibição da ação. “Quem tem níveis de ansiedade elevados e a ideia de que o mundo é um lugar perigoso, tem mais dificuldades em usar a agressividade de forma saudável em situações de conflito”, esclarece António Norton. Por exemplo, tende a anular-se e a ter condutas “evitantes” e, por não conseguir baixar a guarda, fica propensa a cometer erros e distrações, reforçando a crença irracional que já tinha.
É preciso aceitar a tristeza por ficar privado do que se valorizava e tinha por garantido e desenvolver paciência e compaixão
Se o sistema permanecer em sobrecarga, a ansiedade converte-se num inimigo. Surgem as crises ansiosas e os ataques de pânico, com suores frios, enjoos, náuseas, falta de ar, tremores, dores abdominais, pesadelos, como se fosse morrer. O corpo é que paga. “Quando entram na consulta, pergunto onde se manifestam as queixas no corpo e procuro perceber a história da pessoa”, prossegue o clínico. Nas sessões, os pacientes aprendem a monitorizar o nível de ansiedade e a regular-se com exercícios de respiração e relaxamento muscular.
O mais importante é perceber a função do sintoma e o clínico exemplifica com um caso: “Vinha com insónia e baixa autoestima, choro frequente, pensamentos negativos e comportamentos evitantes.” No trabalho psicoterapêutico, verificou-se que os sintomas estavam relacionados com sentimentos de ser vítima de abuso e humilhação no relacionamento com a chefia no trabalho.
Além das estratégias para relaxar em casa, com exercícios de respiração abdominal e de visualização, foi recriada a situação problemática na consulta. “O sentimento face à chefia era idêntico ao que a pessoa tinha com o pai, com quem tinha um historial de imposição e de medo contínuo do conflito e do confronto.” Neste acompanhamento, “tomou consciência de como congelava em situações de conflito, aprendeu a regular emoções e a usar a sua agressividade de forma saudável”.
Se se aprende, reeduca-se
Embora a ansiedade seja reconhecida como uma perturbação mental que afeta 16,5% dos portugueses, o que justifica o elevado consumo de psicofármacos e pode ter uma componente genética, a Ciência tem vindo a mostrar que as manifestações ansiosas são parcialmente aprendidas. Uma equipa de investigadores da universidade norte-americana de Wisconsin-Madison monitorizou o cérebro de 600 macacos bebés com ressonâncias magnéticas e concluiu que os símios imitavam os comportamentos ansiosos dos mais velhos e que a ativação excessiva das regiões do cérebro que processam o medo tinha que ver com a história familiar, em 35% dos casos.
No cérebro humano, a neuroquímica é diferente nas pessoas ansiosas, mas não da forma como se pensava até há algum tempo. O estudo publicado na revista Jama Internal Medicine, do cientista Andreas Frick e colegas, mostrou que as pessoas com fobia social sintetizam mais serotonina no cérebro: em situações de incerteza, entram rapidamente em estado de alerta e gera-se o efeito de túnel ou afunilamento percetivo – o campo de visão estreita-se e perde-se a perspetiva e a noção do que está à volta.
Estes dados vão no sentido dos obtidos por outros estudos, como o de Thalia Eley, docente do Instituto de Psiquiatria do King’s College, em Londres. A sua equipa estudou mil famílias com gémeos e constatou que o estado emocional dos filhos era mais influenciado pelos comportamentos dos pais ansiosos do que pelos fatores genéticos. A aprendizagem e o contágio são variáveis de peso no que toca às manifestações ansiosas, pelo que está em vantagem quem não tem “pais-helicóptero”, como ilustra, de forma distópica, o episódio Arkangel, da série Black Mirror (Netflix), realizado por Jodie Foster. De resto, o stresse, a dramatização, a crítica e a negatividade são fortes inimigos do sistema imunitário. Cuidar-se e manter o moral da “equipa” em casa é crucial, haja ou não um “lesado” em isolamento: a meta é colaborar e ganhar, como ilustram programas do tipo Survivor e afins.
Entre o pânico e a esperança
“Estou a tossir.” “Dói-me a garganta.” “Afastei-me o suficiente?” “Passei o álcool depois de usar o terminal do multibanco? Estarei infetado? Serei portador?” No combate à “guerra viral”, a torrente de piadas e anedotas parece ter a função de compensar a hipervigilância e monitorização contínuas e o receio de todos os cuidados parecerem poucos, já que nem os médicos e figuras públicas escapam. É quase inevitável que todos fiquemos um pouco loucos, mesmo que não estejamos nas trincheiras, como os nossos antepassados, mas apenas notificados para ficar no sofá (bom, nem todos) e situações de maior stresse intensificam a probabilidade de quem sofre de ansiedade generalizada poder ter um ataque de pânico.
No recém-lançado Guia Prático para Vencer a Ansiedade (Bertrand, €16,60, 240 págs.), o médico psiquiatra Diogo Telles Correia e o psicólogo José Brites respondem a perguntas comuns baseados em evidência científica e exercícios práticos já testados e dirigidos a quem não precisou ainda de ajuda profissional, mas também como complemento das sessões. Diogo Telles Correia, docente da Faculdade de Medicina de Lisboa, reconhece que a pandemia desencadeia e amplifica a ansiedade de todos, com enormes consequências, “económicas e mentais”. E acrescenta: “Perdemos o controlo da situação e a sociedade, que era ansiosa, é uma sociedade em pânico.”
Em contrapartida, José Oliveira Palma, especialista em perceção e gestão de risco e docente da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, vê de forma diferente, por exemplo, a corrida aos supermercados: “Dada a elevada perceção de risco e sem estratégias claras, as pessoas tentaram recuperar controlo da forma que sabiam e que estava ao alcance delas.” Os efeitos psicológicos de pandemias e da quarentena estudados nos últimos 15 anos levam o professor universitário a afirmar que “entre 10% e 17% das pessoas terão ansiedade instalada, angústia e stresse pós-traumático, efeitos que podem manter-se entre seis meses e um ano”.
Perdas e (re)começos
Cada um faz a sua parte e começa a ter um papel ativo, até como agente de saúde pública. É, pelo menos, essa a convicção da psicóloga Maria Palha, autora de Emocionar (Penguin, 376 págs., €17,70), um kit de saúde emocional para famílias, que implementa programas de saúde mental em contextos de crise humanitários, conflitos armados e catástrofes naturais. Este livro resultou de relatos de 400 crianças de 13 países (com idades entre os 5 e os 12 anos), entre os quais Portugal, e que levou à fundação da Associação Be Human.
Acerca de como minimizar conflitos em tempos de confinamento, a psicóloga salienta que é preciso aceitar a tristeza por ficar privado do que se valorizava e tinha por garantido e desenvolver paciência e compaixão. Afinal, cada um está a tentar lidar com a mesma situação. “O diálogo é a chave, e os pais devem contar com o facto de os comportamentos impulsivos e rebeldes dos filhos poderem acentuar-se” e que isso se resolve “criando um espaço seguro para discutir eventos, sentimentos e expectativas realistas do que pode ser feito na situação presente e futura”.
No livro, Maria Palha sugere atividades e brincadeiras para fazer em casa e cuidar da saúde mental e deixa uma nota: “Esta é uma oportunidade para nos questionarmos, olharmos para dentro, redefinir o nosso sentido de pertença e orientá-lo para o bem comum.” Não é o filme A Vida É Bela. Mas podia.
Guia para gerir a situação
O que fazer para reduzir o medo, a preocupação e o stresse, sem entrar em desespero
1. Discipline a mente
• Técnica dos 5 minutos: dê largas às preocupações mas num período de tempo definido por si
• Escreva e deixe ir: coloque no papel as ruminações e pensamentos negativos e deite-o fora
• Pare e mude: observe se voltou a cair no registo obsessivo e comece a fazer outra coisa
2. Regule a resposta fisiológica
• Respire: aprenda a levar ar ao abdómen e use a contagem 4-7-8 (inspirar, reter, expirar)
• Exercite-se: liberta toxinas, adrenalina e tensão, e produz endorfinas, que melhoram o humor
• Diga não: a pedidos que excedam a sua capacidade de resposta e aumentem a sobrecarga
3. Evite o ataque de pânico
• Mude o foco: trave pensamentos catastróficos e dirija a atenção para fora de si. Exemplos: olhar a janela, contar os carros estacionados na rua ou os livros na estante
• Distraia os sentidos: regar as plantas, ouvir música, dançar, desenhar, saltar com vigor, cantar, desfrutar de um duche ou de uma passa dentro da boca sem a engolir quebram o ciclo ansioso
• Restaure a segurança: passado o susto, volte ao que estava a fazer antes, ensaiando assim, ao seu ritmo, a capacidade de dessensibilizar e vencer a barreira do medo de ter medo
4. Previna a “ansiedade má”
• Corte nos estimulantes: açúcar, álcool, cafeína e atividades aceleradas antes de dormir
• Regule ciclos de sono: manter horas certas e desligar dos ecrãs cerca de uma hora antes
• Reinvente: volte aos passatempos, jogos e fotos que se queixava de não ter tempo para fazer
• Consuma informação consciente: selecione fontes credíveis e ignore o ruído e os comentários
• Evite o tecnostresse: desligue notificações nas redes e saia de grupos WhatsApp, se for preciso
• Inove nas interações: o isolamento físico estimula formas diferentes e criativas de envolvimento
5. Estabeleça rotinas “amigas”
• Preserve os hábitos pessoais em casa: acordar à mesma hora, tomar duche, arranjar-se, etc.
• Calendarize atividades: horas para teletrabalho, tarefas domésticas, filhos, família, telemóvel, lazer
• Negoceie e cumpra: falar e chegar a acordo sobre o essencial, e cada um fazer a sua parte
• Veja com novos olhos filhos, cônjuge, companheiros de casa e vizinhos
• Cultive a pertença: coloque-se ao serviço da comunidade e colabore em grupos de ajuda
• Crie rituais só seus: ler, meditar, jogar, desligar dos outros, ir para a garagem, não fazer nada
6. Como tranquilizar emocionalmente os filhos (6-12 anos)
• Oriente: explique o que é o vírus e o que podem fazer para ajudar (como lavar as mãos)
• Proteja: derrube medos com factos e passe a mensagem: “Estás seguro aqui, connosco”
• Mantenha rotinas: horas para estudo ou aulas online e trabalhos de casa, e horas para brincar, com e sem os pais
• Converse: sobre o que sentem e relembrem as medidas de segurança a ter
• Aceite: os pedidos de mimo extra
• Alinhe-se com a família: mantenha o diálogo para que todos estejam sintonizados e se apoiem
Fontes:
Adaptado de dados recolhidos em: “The Art of Socializing During a Quarantine”, The Atlantic; livros Emocionar (Penguin), de Maria Palha, e Respire (Lua de Papel), de Richard Brown e Patrícia Gerbarg; e Ordem dos Psicólogos Portugueses