Os economistas sabem-no, os amantes também: fantasiar com o objeto de desejo que se julga inacessível ou proibido é o caminho para tornar uma experiência inesquecível. Vem a puberdade e, com ela, o sonho do amor ideal, que satisfaz plenamente. No corpo e no cérebro de um humano sub-20 circulam doses abundantes de adrenalina, serotonina, dopamina e oxitocina que alteram por completo a paisagem mental e emocional. O cérebro adolescente sofre “podas neuronais”, responsáveis pelas famosas e irritantes variações de humor temidas por tantos pais. A vantagem biológica deste “todo-o-terreno” hormonal estimula a curiosidade e o apetite pelo desconhecido, levando o coração a disparar sem controlo. As primeiras atrações, paixões e os primeiros amores podem transformar a pessoa mais tímida e introspetiva na personagem de um filme épico e ficam gravados na memória porque contribuíram para se ser quem se é. Porém, a primeira vez que se abraça essa experiência avassaladora é mesmo tão decisiva ao ponto de ser considerada a única na biografia íntima de cada um? Segundo a neurociência, a resposta é não.
Helen Fisher, investigadora em comportamento humano da Rutgers University e que ficou conhecida por explicar com fundamento por que razão a paixão dura cerca de ano e meio – mais do que isso compromete o equilíbrio químico do organismo –, assegura que “o amor romântico não é uma emoção, antes um instinto da parte desejante da mente”. Estudos com ressonâncias magnéticas revelaram que as regiões cerebrais estimuladas no estado de atração sexual e emocional são comuns às que ficam ativas no cérebro do jogador compulsivo ou do dependente de cocaína. O sistema de recompensa cerebral alavanca a tomada de riscos para obter prazer e satisfação imediata. Privado dela, o cérebro apaixonado mergulha em estados de angústia, ruminação, frustração e dor. Na “viagem”, que pode durar toda a vida, aprende-se a lidar com as diferenças, a explorar metas comuns e a identificar limites pessoais e a fazer escolhas. Por isso se diz que o segundo amor e os seguintes libertam das desilusões do primeiro, com a vantagem de se contar com as lições e bons momentos que se levam na bagagem e sem se ficar refém de uma experiência sexual ou amorosa que teve o seu tempo.
Entre o mapa e o território
Helen Fischer, atual consultora científica da Match.com (site e app de encontros que agrega também o Tinder), esclarece que podemos sentir-nos atraídos por pessoas que encaixam no nosso “mapa do amor”: elas apresentam traços de personalidade que identificamos como familiares na nossa infância ou apresentam sequências de comportamentos (guiões) que nos fazem sentir “em casa” apesar de, na maioria dos casos, não nos darmos conta deles.
Assim se explica que uma primeira paixão possa dar lugar a uma segunda e uma terceira, quais réplicas desse vínculo original com os primeiros cuidadores, como mostraram os estudos dos psicanalistas Sigmund Freud, John Bowlby e Erik Erikson. Segundo este último, a adolescência é um período de ouro para ensaiar a autonomia sem implicar o domínio ou controlo emocional. Na idade adulta, o desejo tende a ganhar forma em relacionamentos satisfatórios e na capacidade de responder eficazmente às exigências laborais e sociais. Ou não, se se aprendeu a recear os afetos e a evitar a proximidade na família de origem e sem competências emocionais para fazer face à angústia da separação: a probabilidade de ter um romance coxo à nascença é grande.
Há vários anos a trabalhar com adolescentes em aconselhamento e orientação escolar na rede pública, a psicóloga Amélia Amorim assinala que as primeiras experiências amorosas tendem a ser vividas com muito romantismo por parte de rapazes e raparigas do Secundário, embora com uma transitoriedade maior do que em gerações anteriores – “não deu, mas há de aparecer outra(o)” – até por via das tecnologias. Paralelamente, nota-se “uma desconfiança e uma necessidade de controlar sem fundamento objetivo, a tentação de saber quem são os amigos da rede social”. O “preciso de saber” esbarra, desde logo, com os “estou cansado(a) dos ciúmes e de ter de dar explicações”. E, embora o desejo de ter alguém meigo e carinhoso seja comum a todos, “existem miúdos cujo plano de vida é todo feito em função de uma paixão” e outros, que não querem “lidar com uma presença excessiva, que optam por afastar-se ou terminar”. Deixa, por isso, de fazer sentido a expressão “não há amor como o primeiro”.
José Machado Pais, sociólogo e autor do estudo Sexualidade e Afetos Juvenis (ICS, 2012) esclarece que ele se refere a um tempo em que “não havia redes sociais nem tantos encontros como hoje, sendo mais frequente uma paixão acabar em namoro e, mais tarde, em casamento”. A palavra “namoro” chega a ser vista com estranheza, dada a fluidez e experimentação em ambos os sexos, que se converteu no novo normal, alinhada com a emergência da cultura juvenil. O problema é passar do oito para o oitenta: “A pressão social para terem relações sexuais funciona como uma espécie de censura que tende a desinteressá-los ou a impedi-los de se projetarem no outro.” Estamos nos antípodas dos vínculos seguros, a base para experimentar novos relacionamentos, sem guiões em que predominem o ataque ou as defesas, que impedem o alcance de novos patamares de autoconhecimento.
Mal-me-quero, bem-me-quero
“Não creio que um primeiro relacionamento, sexual ou amoroso, possa ser mais marcante do que os seguintes”, assegura a psicanalista Isabel Mesquita. A professora na Universidade de Évora, e autora do livro Disfarces de Amor: Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade Narcísica (2ª ed., Climepsi Ed., 2018), explica porquê: “A inexperiência e o desconhecimento dos desejos próprios trazem inseguranças e expectativas irreais.” A transformação pessoal a sério começa daí em diante. “À medida que se aprende a lidar com as emoções, suas e do outro, os relacionamentos são melhores e mais desenvolvidos.” O que pensar das pessoas que se agarram a uma ligação que consideram inesquecível, quase cinematográfica, impossível de encontrar noutro lugar? “Geralmente, repetem nesse relacionamento padrões de família que envolvem sentimentos de desvalorização, humilhação, vergonha e sem lugar para expressar emoções.” A idealização da primeira história amorosa esconde, por vezes, um sentimento de insuficiência, “acham-se incapazes de encontrar melhor e ficam reféns daquilo que não foi mas podia ter sido”. Todos precisamos de ser desejados, apreciados e amados. A diferença está em saber identificar padrões de atração inconscientes e afastar-se deles, se há um risco significativo de causar danos: “Nesse sentido, podemos escolher por quem nos apaixonamos e construir uma narrativa própria.” Esta tarefa pode ser dificultada pelo experimentalismo digital, que está a mudar os códigos de sedução. Após a euforia inicial, a banalização do fast dating está a criar aquilo que o psicólogo social Eli Finkel designou de “comoditização de pretendentes”. O fenómeno foi exemplarmente ilustrado no filme Newness, de Drake Doremus, que fez furor há pouco mais de um ano, no festival de cinema independente Sundance, por retratar uma realidade comum à geração millennial, mas não só: a incessante busca pela novidade, catalisada pela tecnologia, deixam protagonistas entregues a si mesmos, numa lógica de gaming que dificulta a possibilidade de aprofundar um relacionamento, com os seus altos e baixos. Nesta história, o par sobrevive à vertigem tentadora de passar ao próximo match, ou à próxima experiência, e apercebe-se de que amar é um ato de coragem que implica manter-se no barco sem desistir da viagem, com tudo o que traz: frustrações diárias, necessidade de aprender a adiar a recompensa e habituar-se à ideia de que os problemas são desafios a dois sem solução imediata nem previsão de game over. Como lembra Isabel Mesquita, “tem-se ligações consecutivas que criam a ilusão de não se envolver verdadeiramente com ninguém”. E isso tem um senão: “Ao descartar o outro, estou a descartar-me a mim e a deitar fora a possibilidade de conhecer-me melhor na relação.”
Existe um “eu” por haver um “nós”
A psicóloga norte-americana Susan Andersen, da Universidade de Nova Iorque, estuda há vários anos o impacto da transferência de perceções e sentimentos nos relacionamentos interpessoais que consideramos importantes ao longo da vida. A investigação publicada no Journal of Personality and Social Psychology mostrou que “as representações mentais de outros significativos são ativadas e usadas quando conhecemos pessoas novas” (ver entrevista). Ao transferir para elas os guiões de ligações prévias, isso afeta a maneira como as vemos e respondemos a elas, bem como a forma como nos vemos a nós. “Os relacionamentos passados influenciam o presente, a natureza interpessoal do Eu e o papel dos outros significativos na construção da identidade.” A investigadora concluiu, em estudos anteriores, que este mecanismo sociocognitivo tem consequências para o melhor e para o pior: tanto pode transformar e ampliar a visão pessoal e do mundo como, se for um padrão problemático, trazer sofrimento.
O sociólogo e escritor italiano Francesco Alberoni afirmou que, numa vida, podemos experimentar até três amores, dos quais não saímos os mesmos. Nunca seremos demasiado velhos para encarnar a pele de pioneiros do amor e crescer com ele, outra vez – que é sempre uma primeira.
4 perguntas a Susan M. Andersen
Professora de Psicologia, Universidade de Nova Iorque, EUA
Os seus estudos validam a ideia segundo a qual “não há amor como o primeiro”?
Apesar de o tema cativar os média, há poucos dados a demonstrar que o primeiro amor (beijo, experiência sexual ou relacionamento romântico) é mais influente do que os seguintes. Sabemos, no entanto, que pessoas muito significativas com quem se viveu um romance, uma amizade profunda ou com quem se tem laços fortes na família de origem têm um impacto considerável na forma de percecionar e responder a novas pessoas.
Colocar atributos de quem conhecemos no passado noutra pessoa tem riscos?
Quando a nova pessoa se assemelha a outra que foi significativa, isso dispara o feixe de dados armazenados na memória e afeta a perceção, que leva a julgamentos parciais e precipitados face a essa pessoa: achamos que gostamos, ou não, dela. Ver uma pessoa com o filtro de outra de quem se tem boa impressão tem a vantagem de dar-lhe o benefício da dúvida e confiança extra, através da escuta e da empatia, oleando a interação social. Mas há uma desvantagem: existe o risco de vê-la com óculos cor de rosa e de desvalorizar sinais de alarme. Se a relação prévia era turbulenta, isso pode ser evocado na nova ligação e conduzir à repetição do padrão anterior pois, mesmo estando ciente disso, os hábitos aprendidos antes tendem a surgir na mesma.
O género e a idade contam no modo de elaborar as histórias amorosas?
Não observei isso, mas refiro alguns pontos relevantes: (a) Os homens são menos propensos do que as mulheres a definir-se, em parte, em função das suas ligações, embora ambos o façam, segundo as pesquisas. (b) Elas querem ser escutadas e consoladas mais do que receber conselhos, eles preferem dá-los e procurar soluções. (c) Qualquer mecanismo automático, como o processo sociocognitivo da transferência, é mais comum em casos de fadiga, desgaste e sob pressão (sobrecarga de estímulos, multitasking). (d) As funções executivas do cérebro, nos lobos frontais, diminuem com o envelhecimento e aumentam a probabilidade destes processos automáticos. (e) Mudanças familiares, como ter um filho, levam a que o que se conhece sobre ele influencie a maneira de olhar para outras crianças.
As teorias da vinculação explicam a forma de nos relacionarmos com os outros?
São úteis para compreender os laços entre pais e filhos e as ligações amorosas entre adultos, mas pode ser redutor categorizar as pessoas em função deles (ansiosa-ambivalente, por exemplo), como se fossem traços definitivos, já que os tipos de apego variam consoante cada relacionamento íntimo.