Se há coisa mais constrangedora e que iniba uma pessoa de sentir-se à vontade na sua pele, seja num encontro amoroso ou noutro que implique interação social, essa coisa é ter acne severo ou rosácea. Quem sofre ou sofreu deste problema e passou pelo gabinete de um dermatologista já terá certamente tomado a famosa molécula milagrosa que dá pelo nome de isotretinoína. Aprovada comercialmente nos anos 1980, viu o seu consumo popularizar-se, sobretudo entre adolescentes. Há quase duas décadas, discutia-se na comunidade médica se estas cápsulas, do grupo dos retinóides, produziam alterações de humor indesejadas, como estados depressivos e ideação suicida.
A morte de um jovem americano, filho de um senador, que tomava o medicamento e pôs termo à vida veio lançar novas suspeitas sobre o medicamento. Ainda que o processo aberto pela mãe do rapaz na justiça tenha sido arquivado, há 12 anos, a investigação sobre os efeitos adversos prosseguiu. No passado dia 3 de julho, um estudo publicado pela JAMA Dermatology identificou, a partir de dados da agência reguladora do medicamento americana (FDA), entre janeiro e 1997 e dezembro de 2017, mais de 17800 efeitos secundários do foro psiquiátrico associados ao uso deste princípio ativo: as principais incluíam perturbações depressivas, ansiosas e labilidade emocional.
Metade dos casos reportados à FDA ocorreram em homens e um pouco menos (46,9%) em mulheres, sendo que 53% dos efeitos adversos com impacto na saúde mental ocorrem em pacientes com idades compreendidas entre os 10 e os 19 anos, tendo culminado em suicídio. Porém, a equipa coordenada por Sean Singer concluiu que era necessário fazer novos estudos para determinar se existe uma relação de causa-efeito, uma vez que certas alterações do humor podem potenciar o acne e que a percentagem de suicídios registados entre quem tomava a substância era inferior à verificada na população americana. Em que ficamos? É realmente perigoso tomar este medicamento, vendido com prescrição médica? Ou trata-se de um falso alarme?
“Doses de autoestima”: conta, peso e medida
Face a este artigo, o presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia contrapõe com a existência de outros trabalhos com evidência científica no sentido inverso. Miguel Peres Correia adianta que a toma melhora o humor de adolescentes e explica porquê: “Ao tomarem o medicamento têm controlo sobre a aparência, ganham uma melhor auto-imagem e, consequentemente mais auto-estima.” O médico tranquiliza jovens e pais e acrescenta que “não há razão para se evitar um fármaco usado há décadas por milhares de adolescentes em todo mundo.” Apenas uma nota: pessoas com depressão ou tendência para tal que iniciem a toma e apresentarem “sinais de tristeza injustificada” devem suspender o tratamento.
Comercializada em Portugal por quatro laboratórios e prescrita com sucesso, a isotretinoína chegou a ser considerada “medicamento do século no ano 2000, nos Estados Unidos”, lembra o é tomada de acordo com protocolos mais seguros do que quando foi lançada no mercado. Ao ler a bula do medicamento, encontramos os antecedentes de depressão na secção de advertências e precauções a ter antes da toma. As alterações de humor, depressão e ansiedade (até uma em cada mil pessoas) são citados como “efeitos raros” e, entre os efeitos secundários “em casos graves”, são apontadas as ideias suicidas e tentativas de suicídio (segundo nota do INFARMED, em 2017, se tal ocorrer, parar de tomar o fármaco e recorrer à urgência hospitalar).
O dermatologista António Massa, diretor da clínica com o seu nome, acompanha pacientes com problemas de acne difíceis de resolver desde os anos 1980 e, olhando para o estudo em questão, argumenta que ele falha por usar um programa de distribuição de gestão de risco (da FDA) para a isotretinoína que não se aplica na Europa e “está desacreditado por obrigar a controlos mensais que as pessoas não podem cumprir”. O ex diretor de serviço no Hospital de Santo António, no Porto, destaca uma revisão do British Medical Journal publicada este ano e que aponta para uma eficácia superior a 80% na resolução do problema do acne juvenil, com menos efeitos secundários, sejam dores musculares ou outros. “As doses hoje são menores, 0,5 miligramas por quilograma de peso, comparativamente às 2 miligramas no início dos anos 1980”. A que se deve, então, tanto agito?
Eficácia e vigilância
“Em mais de 30 anos de experiência nesta área e com milhares de casos, apenas registei três ou quatro em que as alterações comportamentais associadas à toma levaram a suspender o tratamento, por prevenção”, assegura o clínico. Ainda assim, “o alerta deve sempre ser feito no ato da prescrição”. A duração do tratamento varia entre cinco e oito meses e, após terminado, recomenda-se a aplicação de medicação em creme (uso tópico) pelo menos por seis a 12 meses contabilizados a partir da última crise (de acne).
O que têm a dizer os profissionais de saúde mental? Luisa Figueira, ex presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e professora da Faculdade de Medicina de Lisboa confirma que “há vários fármacos que podem resultar em quadros depressivos e requerem atenção redobrada quando são prescritos”.
À semelhança de outros medicamentos usados no tratamento da hepatite C, esclerose múltipla ou quimioterapia, “este requer atenção redobrada”, além de implicar outros cuidados como o de “não poder engravidar durante o tratamento e nos dois meses seguintes”. A médica psiquiatra sublinha que “o acne tem muitas vezes uma componente psicológica”, sendo na adolescência que este problema leva muitos a não quererem sequer ir à escola. “Nos últimos cinco anos acompanhei cinco jovens com acne grave e nenhum deles manifestou sintomas depressivos por tomar o medicamento”.
Em síntese: a ter de tomar, o melhor é monitorizar se nos primeiros tempos de toma sente sinais de tristeza que não tinha antes. Em caso afirmativo, ou de dúvida, consultar o médico sem reservas ou inibições é a melhor opção.