Lisboa, 28 de agosto de 2007. Se tivesse um diário, a descrição de como foi a chegada a casa depois de nascer a minha primeira filha ficaria bem no guião de um filme de terror. É o que penso à distância de quase 11 anos, mas aposto que a senhora minha mãe vai gozar-me até à eternidade por causa deste artigo. Não admira. Ela teve seis filhos – os três mais velhos com intervalos de um ano – e nunca se queixou.
Quanto a mim, aos 40 anos estava de tal maneira convencida de que já sabia tudo o que iria acontecer antes, durante e depois do parto que não perdi sequer tempo com aulas de preparação. Pus-me nas mãos do meu médico obstetra (que não apareceu na hora agá porque se encontrava no estrangeiro, um clássico), apostei que seria cesariana e antecipei os cinco meses de “licença de parto” como umas férias prolongadas. Não podia estar mais enganada.
Vá, podem rir-se à vontade. Agora também me rio ao recordar as primeiras horas sozinha com uma filha recém-nascida e um marido morto de cansaço, mas na altura chorei baba e ranho e pensei: no que me fui meter?! Saíra da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) sem conseguir sentar-me direita por causa dos pontos no períneo (aquele conjunto de músculos entre o osso púbico e o sacro e o cóccix) e a desesperar com uns mamilos de silicone escorregadios; mas sobretudo nada nem ninguém me preparara para começar a fazer chichi pelas pernas abaixo sem dar por isso ou ter de ser “mungida”.
Ainda vejo a minha mãe e uma das minhas irmãs sentadas à minha frente, nuns banquinhos, a aplicarem à vez, diligentemente, toalhas quentes e um creme anti-inflamatório. A subida do leite fora tão repentina que senti mais dores nesse dia do que ao longo das várias horas de contrações, e por isso percebo que alguém sonhe com a invenção de uma epidural para depois do nascimento.
“Como é que ainda ninguém se lembrou disso?”, já ouviu a enfermeira Ana Lúcia Torgal a uma mãe de primeira viagem – e a verdade é que não estranhou a pergunta. Ao fim de seis anos a acompanhar casais na Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) Saudar, do agrupamento dos centros de saúde de Oeiras, esta especialista em saúde materna e obstétrica sabe que são poucos os pais que se encontram preparados para o pós-parto. “Os que têm filhos pela primeira vez estão muito focados no parto e não no que vai acontecer a seguir; nunca contam, por exemplo, com as dores nas semanas seguintes, a hipótese de a amamentação vir a ser difícil ou a privação do sono.”
Muitas vezes não fazem ideia de que nos primeiros tempos é normal as mulheres sangrarem, terem prisão de ventre e dores abdominais e de costas. Ou que andar deixa de ser uma brincadeira de crianças porque quase sempre houve um rasgão na zona do períneo (que terá de cicatrizar com ou sem a ajuda de pontos). E que mesmo que as mamas não estejam a estalar de grandes nem os mamilos gretados, ainda há que contar com o bicho-papão da dor de alma difusa, um misto de ansiedade, cansaço e depressão que torna o novo estado de coisas difícil de suportar.
Além destes sintomas habituais no pós-parto, muitas mulheres passam por complicações graves e não procuram ajuda médica porque as tomam por normais ou têm vergonha de contar. Se uma grande hemorragia não deixa margem para dúvidas, são capazes de hesitar no caso de incontinência, de dores na chamada cintura pélvica (por disfunção da sínfise púbica) ou de prolapso de um ou vários órgãos da cavidade pélvica (bexiga, útero ou reto).
Ana Lúcia Torgal faz o despiste de todas estas situações durante o mês e meio de curso de recuperação pós-parto organizado pela sua unidade, e mesmo quando o grupo de puérperas termina formalmente quase sempre ele continua por WhatsApp. Acaba por ser uma espécie de fórum, quase um grupo de autoajuda com a equipa de enfermagem na retaguarda. “Se percebo na conversa que uma mãe tem o ducto [mamário] bloqueado, telefono-lhe”, exemplifica. “Aliás, dou o meu telefone pessoal a toda a gente, o que torna o contacto mais fácil.” Nada de mais, sublinha, quando a sua missão é de proximidade com as pessoas. “Devemos ser acessíveis porque precisam de ajuda já para daqui a bocado, não podem esperar pela marcação de uma consulta.”
Teoricamente todas as UCC deveriam funcionar assim, mas a realidade é outra – em muitos centros de saúde nem sequer existem estas unidades de saúde porque implica terem enfermeiros especialistas. Daí a importância de profissionais como a doula Sara do Vale, que no pós-parto pode encarregar-se de tarefas domésticas, refeições, amamentação, ajuda com outros irmãos, apoio emocional na integração da experiência do parto e massagens de recuperação para a mãe e o bebé.
Formada em Inglaterra, há anos que Sara do Vale ouve falar nos três meses após o nascimento como o “quarto trimestre”.
E aplaude. “No mundo ocidental, as mulheres são muito puxadas para regressarem rapidamente ao normal, quando na verdade é um novo ‘normal’”, nota. “Mesmo medicamente, é preciso tempo para o útero voltar ao sítio, deixar de sangrar…
E há experiências de parto que deixam uma mulher virada do avesso.”
Outra mentalidade precisa-se
A chamada “revisão do parto”, feita pelo médico, está prevista para as 12 semanas, e até lá há alguns problemas que podem passar-se, sabe de cor também Ana Campos, diretora clínica adjunta da MAC. “Era importante haver uma equipa composta por médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social, com mobilidade para fazer visitas domiciliárias, que se articulasse com os cuidados de saúde primários.”
Sara do Vale queria mais – queria que acontecesse uma mudança de mentalidade. “As mulheres estão a trilhar um terreno desabitado porque as suas mães tiveram licenças de parto curtas; por isso, as suas necessidades após o nascimento do bebé não são reconhecidas culturalmente”, lembra. “Parece um rebuçado – a mulher está grávida, linda, e quando o bebé nasce, tira-se a prata, já não interessa.”
Mãe de dois filhos, hoje com 12 e 6 anos, esta doula sabe na pele que a seguir ao parto a mulher sente-se perpetuamente assoberbada e exausta. “A nossa obrigação é aligeirar a carga desta mulher”, diz. “Para começar, devemos garantir que ela faz o básico: comer e dormir. Entretanto, há também que baixar os seus níveis de ansiedade. Se não fizermos isso, estará a ser sabotada mais à frente; provavelmente vai ser uma mãe ansiosa.” E estamos a falar de uma questão de saúde pública e não de prendinhas pós-parto, defende. “Nós e os bebés precisamos de mães que estão bem e felizes.”