Olá! O meu nome é Lara e tenho 15 anos. No ano passado envolvi-me num total pesadelo e até agora ainda não consegui recuperar do trauma. A minha psicóloga aconselhou-me a escrever sobre a minha experiência, dizendo que me iria ajudar a recuperar. A verdade é que, depois de tantas terapias e medicamentos, não tenho muitas mais escolhas. Tudo começou no início do passado ano letivo. Eu era intitulada de “menina perfeita”, pois era boa aluna, tinha um grupo enorme de amigos, a minha família sempre me apoiava em tudo e para inveja das outras raparigas, eu até tinha um namorado. Sabia que a minha vida era perfeita e nunca pensei que as coisas pudessem mudar tanto.
O primeiro dia de aulas era sempre o reencontro de muitos amigos, quando sabíamos o que cada um tinha feito nas férias, e eu adorava saber tudo sobre todos. Quando estava prestes a entrar na sala para a minha primeira aula, reparei que alguém estava a bisbilhotar no meu cacifo e fui lá verificar. Quando cheguei já não estava lá ninguém, apenas uma carta que dizia “Vem ter comigo à garagem abandonada ao fundo da rua às cinco da tarde. Vem sozinha e não te atrases”. Fiquei assustada e sem saber o que fazer. Hoje arrependo-me de ter aceite aquele convite, que viria a desgraçar a minha vida.
Depois da escola, desci a rua e entrei naquela garagem. Estava cheia de grafitis e lembro-me de ouvir um constante pingar de gotas que caíam diretamente do teto para uma poça de água que já se tinha ali formado. Liguei a lanterna do telemóvel para poder ver melhor e encontrei uma pequena divisão decorada com notas musicais. No centro estava uma pequena mesa com o que pareciam ser pautas musicais. Peguei nos papéis e como mais ninguém apareceu, apanhei um autocarro de volta para casa.
Chegada a casa fui para o meu quarto tentar descobrir que melodia aquelas pautas escondiam. Passei a noite em claro, mas, finalmente, já a aurora irrompia pelas árvores refletindo alguns raios brilhantes pela janela, descobri. Era uma melodia muito peculiar e complexa, contudo nunca a tinha ouvido. Pensei que aquilo tinha sido apenas mais uma pequena brincadeira e já tinha acabado. No entanto, estava só a começar…
No dia seguinte, recordo-me de estar a passar pelo auditório e ouvir alguém a tocar a música que eu tinha decifrado. Não hesitei e perguntei à rapariga que estava sentada no piano onde a tinha encontrado. A rapariga era alta e muito, muito magra, tão magra que os seus ossos pareciam sair da pele. Não me recordo muito bem o que ele me disse, mas foi mais ou menos assim: “Toca esta melodia ao contrário”. Fiquei pasmada a olhar para ela, não sei bem por quanto tempo, mas, entretanto, a campainha da escola tocou e nunca mais vi a rapariga.
Por sorte, o meu irmão mais velho já tinha tido aulas de piano e ajudou-me a converter a melodia. Depois do trabalho feito não deixei que ele ouvisse, pois tinha medo do que podia dali surgir. Fugi para o meu quarto o mais depressa possível e comecei a ouvir a melodia que o meu irmão gravou para mim. Começou por parecer tudo normal, até que de repente algumas palavras se desvendavam para fora da melodia deixando uma mensagem enigmática, que contava uma história sobre um concurso de canto que acabou num banho de sangue e que eu era a única pessoa que podia desvendar o mistério. Dizia também que o caso tinha sido arquivado há anos e que era necessário de juntar todas as pistas até chegar ao culpado. A pior decisão de toda a minha vida foi ter aceite aquele estúpido desafio!
Passaram-se semanas e não consegui descobrir mais nada sobre caso. Todos os dias depois das aulas ia para a garagem procurar saber mais sobre aquele concurso. À medida que o tempo passava, eu ficava cada vez mais obcecada e, a pouco e pouco, a minha vida começou a desmoronar-se. Perdi amizades, por andar mais isolada, já não passava tempo em família e por isso as discussões com os meus pais tornaram-se permanentes. Para piorar toda esta situação o meu namorado, o Gustavo, terminou comigo, porque segundo ele, eu já não era a mesma. Deveria ter desistido depois de tantas semanas sem quaisquer avanços na investigação, mas não, aquele caso de alguma maneira já fazia parte de mim e na altura não via nenhum mal nisso, mas agora quando penso no que me aconteceu isso assusta-me.
Decidi começar a passar as noites na garagem e, uma noite, enquanto me preparava para dormir, vi um pequeno símbolo no chão, igual a um que existia na sala de música. Pesquisei sobre ele e descobri que o símbolo afinal representava uma palavra em grego que significava “inamovível”. Achei que não teria nada a ver com o tal concurso que me pediram para investigar, mas eu estava perante a minha próxima pista. Procurei saber mais sobre a palavra para me certificar se tinha outro significado que me ajudasse na investigação. E tinha. Nos anos 90, tinha havido um grupo de cantores amadores chamado Inamovível cujo nome, segundo eles, queria dizer que eles eram inseparáveis. Continuei a pesquisa por curiosidade sem saber que o que estava a ler era a história do tal concurso que tinha acabado em sangue. De acordo com aquele artigo todas as semanas eles organizavam um pequeno concurso, o famoso “Quem canta melhor?”.
A 17 de outubro de 1983, enquanto descia a avenida principal, o grupo foi alvo de inúmeras agressões e nunca se veio a descobrir quem, como e porquê. Não consegui dormir naquela noite com a vontade de saber mais sobre os Inamovível e continuei a pesquisar. Todos os sites e jornais diziam a mesma coisa, e quando eu estava prestes a perder a esperança encontrei, debaixo de um móvel que havia lá na garagem, uma espécie de diário secreto. O diário falava da história de um dos membros do grupo e contava tudo sobre uma noite preta e vermelha. Aquelas páginas revelavam que aquela garagem, onde eu estava, tinha sido o local onde eles organizavam o seu concurso semanal. Falava sobre como todos se divertiam e era sempre uma noite inesquecível. E uma delas foi inesquecível, mas por outros motivos. Naquela noite, o grupo tinha tido uma horrível discussão por causa de um dos membros que não respeitou os outros e desceu a avenida principal de elétrico, contudo, como era a noite do concurso não quiseram cancelá-lo. Não percebi o porquê de ficarem zangados de alguém ter descido a avenida de elétrico, mas agora que penso nisso deve ter sido porque passou na mesma avenida em que foram vítimas de tão bárbaro ataque.
O diário continuava, e eu estava cada vez mais envolvida naquelas palavras. Relatava todos os pormenores da noite; acabei por descobrir que a fúria de um dos membros o levou a beber pela noite fora fazendo com que já não dissesse coisa com coisa, tornando-se muito violento. Quanto mais o acalmavam, mais ele se enervava e, quando o tentaram expulsar da garagem, ele pegou numa arma que tinha atrás de um dos tijolos soltos na parede e começou a disparar até acabarem as balas. Os únicos sobreviventes foram a pessoa que escreveu o diário e mais dois rapazes que, felizmente, estavam na casa de banho. Fiquei feliz por ter desvendado o mistério, mas agora só penso o quanto fui ingénua por não desconfiar de que tinha sido demasiado fácil desvendar um caso de homicídio que, até ao momento, ninguém, nem mesmo as autoridades policiais, tinha descoberto.
Quando desliguei daquela fantasia e me voltei a juntar à realidade notei o que tinha feito à minha vida. Eu estraguei a minha vida “perfeita” e agora vivia apagada naquela luz que me perseguia. Não aguentei ficar esquecida pelos corredores da escola e ter a minha família sempre a criticar-me. Não consegui dormir naquela noite com a vontade de saber mais sobre os Inamovível e continuei a pesquisar . Sem me aperceber, em pouco tempo tinha afastado toda a gente da minha vida. Passaram-se meses, estava a piorar cada vez mais e só me lembro de um dia acordar numa cama de hospital rodeada de várias pessoas, entre elas médicos e enfermeiras. Segundo eles, eu tinha-me tentado suicidar e o meu sistema nervoso tinha colapsado. A minha única hipótese de recuperar era ir para uma casa onde tratavam, tal como os médicos afirmaram, “pessoas como eu”. Assim teve que ser.
Quando lá entrei, a minha primeira sensação foi muito negativa. As paredes escuras, os quartos apertados, toda a gente vestida de igual… Aquilo realmente assustou-me. Mas tudo melhorou quando descobri o jardim e a biblioteca. Fiquei completamente apaixonada pelos livros e eles despertaram um novo eu. Estava a melhorar cada vez mais depressa, já pronta para ir para casa quando escolhi um último livro para ler que, por coincidência, tinha como título “Quem canta melhor”. Não me importei, achei que eram coisas completamente distintas e até achei alguma piada à coincidência, mas não eram. O livro contava exatamente a mesma história que o diário que eu havia encontrado na garagem, mas ainda com mais pormenores, o que tornava toda aquela situação bem mais assustadora. No final do livro havia uma carta que me mandava ir até à cozinha e fazer a receita que lá estava. Olhei muito fixamente para a carta, durante longos minutos, sem saber o que iria fazer: por um lado, sabia que aquilo me tinha trazido a este lugar, mas, por outro, tinha uma enorme curiosidade de saber o que aquela receita significaria.
A receita referia ingredientes muito estranhos e que nunca ninguém pensaria em misturar como, por exemplo, cimento picado e cebola às rodelas. No final dizia para meter tudo no liquidificador e servir. Obviamente que eu não tinha intenção de beber aquilo, mas mais uma vez algo estranho aconteceu. Eu, estranhamente, bebi a solução e só acordei, mais uma vez, no hospital. Fiquei confusa porque eu não me lembrava de nada do que tinha acontecido no dia anterior, a não ser ter lido o livro e a receita. Segundo os médicos, eu tinha ingerido um veneno e o meu cérebro iria ficar atrofiado para sempre.
Agora sou considerada uma “tolinha”, pelo menos foi o que me disseram que corre na escola. Claro que a minha mãe foi fazer queixa à Polícia sobre o que se tinha passado. Estranhamente, o tal homicídio de que falava a música, o diário e o livro eram pura invenção. Na Polícia não havia quaisquer registos de um caso semelhante naquela data, e o livro que eu tinha lido não pertencia a nenhum autor e não estava registado em nenhuma editora, foi considerado um livro-fantasma, que aliás deu o nome à investigação que estão a fazer sobre o meu caso: “Operação Fantasma”.
Os médicos aconselharam-me a ficar mais alguns meses no centro de reabilitação, para poder ser vigiada e acompanhada vinte e quatro horas por dia. Habituei-me muito bem ao Centro, fiz novos amigos e até criei um clube com ajuda da minha psicóloga chamado “Os Amarelos”, um clube onde cada um pode falar abertamente sobre os seus problemas ajudando assim à sua recuperação. Dei este nome ao clube pela cor amarela ser uma cor que nos traz harmonia e serenidade, uma cor que mostra que as cores claras conseguem sobressair na maior escuridão.
Até hoje ainda ninguém descobriu quem me fez isto, mas ainda tenho esperança. Sabe-se que o meu caso não é isolado, existem outros adolescestes a sofrer tal como eu. A mesma técnica foi utilizada, ainda que com outras histórias e outros protagonistas. Espero que em breve me possa livrar da medicação e voltar para casa.”
Inês Dias Ferreira, 14 anos