Se há ícone da ideia de “sustentabilidade”, na cidade de Lisboa, esse será a sede da Fundação Calouste Gulbenkian. É lá que vamos encontrar Viriato Soromenho-Marques, 54 anos, que foi o coordenador científico do Programa Ambiente daquela instituição, entre 2007 e o seu fim, em 2011. À hora marcada, seis da tarde, os jardins desenhados por Ribeiro Telles enchem-se de gente. Há quem atravesse o quarteirão, refugiando-se do tráfego, a maioria vem para o concerto da orquestra residente que toca obras de Haydn e Stravinsky.
O tempo parece suspenso. As senhoras saem dos carros, elegantes. Passa um Jaguar. O céu ameaça chuva. As más notícias chegaram há minutos: morreu Manuel António Pina. Viriato Soromenho-Marques acaba de saber. Caminha por entre os muitos que aguardam a entrada em cena do maestro Lawrence Foster e dos seus músicos.
Sentamo-nos para falar de um outro tempo que parou. Aquele em que Portugal, “sempre a reboque da Europa”, parecia preocupado com assuntos como a dependência energética, as alterações climáticas, a produção alimentar.
Como isto tudo se liga com a crise do Euro, as lideranças europeias, e alguns interesses particulares é matéria para ir descobrindo, ao longo desta entrevista.
Para já, vamos guardar uma definição de “sustentabilidade”: “Uma sociedade capaz de durar no tempo, capaz de vencer a usura, sem cair na fantasia do crescimento infinito. capaz de fazer refletir no seu sistema económico uma relação positiva com os valores da justiça e o respeito pelas condições naturais e ambientais do seu território.” Era nessa ideia de equilíbrio entre o que é economicamente interessante e ambientalmente seguro que parecíamos empenhados (entre Quioto e Copenhaga).
Mas a crise das dívidas soberanas trouxe, de novo, à superfície, as limitações políticas da União Europeia: “Existe uma Europa em formação, adiantada no que respeita aos mercados, à circulação de pessoas, mesmo à educação e à cultura, mas continuamos a ser governados por políticos provincianos. Temos uma crise europeia, mas apenas respostas pateticamente paroquiais para a enfrentar.”
Há uma pequena história para ilustrar o problema. Viriato Soromenho-Marques integrou, entre março de 2007 e 2010, o Grupo de Alto Nível para a Energia e as Alterações Climáticas, composto por 12 individualidades, convidadas por Durão Barroso para aconselhar a Comissão Europeia. Numa das últimas reuniões deste grupo de peritos europeus, nas vésperas da Conferência de Copenhaga (dezembro de 2009), Viriato ouviu o seu colega inglês, o famoso economista Nicholas Stern, contar uma conversa que tinha tido com investidores da City de Londres: “Stern falou, um dia inteiro, com investidores, representando 13 biliões de dólares (cerca de 60 vezes o PIB português). Eles estavam interessados em investir nas energias renováveis e na eficiência energética, desde que houvesse um acordo, mesmo que mínimo, em Copenhaga. Tudo isso foi por água abaixo. Tal como hoje, na crise europeia, a culpa é da mediocridade política e não da alegada maldade dos mercados.”
AS ‘RENDAS EXCESSIVAS’
Em Portugal, a história é semelhante. Nos últimos anos, muitas empresas apetrecharam-se para concorrer no mercado internacional da produção ambiental mente sustentável. A tal ponto que Peter Bakker, presidente da WBCSD (sigla em inglês para Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável), chegou a considerar Portugal como um dos países do mundo em havia mais empresas com capacidade instalada de tecnologia ambiental.
Mas, de repente, a mudança de políticas (nos transportes, nas energias renováveis) travou a expansão deste mercado. “Do meu ponto de vista, é um passo errado. Quando as iniciativas sustentáveis são travadas, o ímpeto perde-se e, depois, torna-se muito mais difícil recomeçar, ao haver outra vez dinheiro”, alertou Bakker, em finais do ano passado, referindo-se às medidas do Governo português.
Desde que tomou posse, o Governo de Passos Coelho travou uma série de medidas tomadas nos anos anteriores. A mais emblemática é, porventura, a que concedia apoios do Estado à produção de energias renováveis. Álvaro Santos Pereira, ministro da Economia, defendeu a ação do Governo, porque “se nada fosse feito, Portugal teria uma dívida neste setor acima de 5 mil milhões de euros em 2020”.
Portugal chegou a ser o quinto país mundial com maior aproveitamento das renováveis, em 2010, ano em que 53,2% da eletricidade produzida resultou de fontes “limpas”. Este foi o resultado de uma estratégia que, desde os anos 90, levou vários governos, de diferentes cores, a apostar neste setor.
Perguntamos a Viriato Soromenho-Marques se tal consenso acabou: “Infelizmente, também aqui este Governo parece uma comissão liquidatária. Mesmo abstraindo dos benefícios ambientais, a aposta nas renováveis seria indispensável, numa ótica de competitividade. São energias endógenas, melhoram a nossa balança comercial, criam mão-de-obra especializada, desenvolvemos patentes e tecnologia própria que podemos exportar. Recusamos a liderança, num dos poucos domínios onde poderíamos lutar por ela.”
Hoje, a prioridade expressa do Governo é a contenção dos custos. E, de facto, as renováveis representam parte da fatura. Concretamente, são “15% dos ‘custos políticos’ que o consumidor paga”, estima Soromenho-Marques. Mas esse custo pode ser compensador.
O mesmo parece reconhecer, agora, a própria troika. Um dos pontos que os credores da dívida portuguesa fizeram questão de introduzir no Memorando de Entendimento foi, precisamente, o da diminuição das “rendas excessivas” pagas pelo Estado às empresas do setor energético. O chamado “défice tarifário ” (o montante que o Estado paga, como compensação para a estabilização dos preços exigidos aos consumidores) está nos 3,7 mil milhões de euros. O objetivo é acabar com esse défice até 2020. E uma das consequências dessa política é o corte no apoio às renováveis.
Mas, na última avaliação da troika, em setembro passado, a Comissão Europeia parece ter voltado atrás na sua maneira de resolver o problema. “A eliminação do défice tarifário será alcançada mais pela alocação das receitas das licenças do CO2 (que vão financiar o sistema elétrico com 1 930 milhões de euros até 2020) do que pelas medidas da redução de custos (cerca de 1 275 milhões de euros até 2020).” Carlos Pimenta, um dos pioneiros da sustentabilidade em Portugal (foi secretário de Estado do Ambiente num Governo PSD) já lamentou a falta de paciência dos governantes. É que, nas renováveis, o que custa é o investimento inicial. Depois, quer o Sol, quer o vento, quer as ondas, quer a biomassa são “de graça”.
Há sempre várias formas de olhar para o mesmo problema.
“O Estado está, pela primeira vez, a reduzir os custos do setor elétrico”, defende o secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, que tem criticado o apoio às renováveis “à custa de sub tarifários”: “Aquilo que os governos anteriores fizeram foi atribuir direitos aos produtores, garantir-lhes remunerações que, por coincidência, não se refletiam no presente, mas apenas no futuro.” Viriato Soromenho-Marques discorda: “Há limites para a ignorância e o desconhecimento da história. Quem tenha os pés na terra sabe que, nos últimos 200 anos, em todos os ciclos e modos energéticos (do carvão ao petróleo, não esquecendo o gás natural e o próprio nuclear) sempre houve estímulos do Estado. Todas as formas de energia são subsidiadas. Do que as renováveis necessitam é de um apoio inicial para ganharem velocidade de cruzeiro e se sustentarem no mercado. Este Governo corre o risco de deixar afogar o nadador quando ele já está a aproximar-se da praia.
A estratégia energética, como toda a estratégia, visa sempre o futuro. Isso é política. O resto é mercearia.”
EMPREGOS VERDES
Na prática, o Governo acabou com os benefícios diretos aos consumidores para a aquisição de energia solar. O Estado deixou de contribuir com metade do valor dos coletores (que custam cerca de 1 800 euros para uma família de quatro pessoas) e aumentou o IVA destes equipamentos, de 12% para 23%. A penalização fiscal, a juntar à quebra do consumo induzida pela crise, fez recuar esta mudança energética.
O outro recuo, mais simbólico, deu-se no projeto da “mobilidade elétrica”, em que Portugal foi pioneiro. Lançado em outubro de 2009, hoje está praticamente moribundo.
Chegou para a PSP se gabar de ser a primeira polícia do mundo a possuir uma frota de automóveis com zero emissões de CO2 oito carros elétricos. Uma aposta que o secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, considera “muito interessante “, mas “quase proibitiva”. As vendas caíram 65%, no último ano (à boleia do recuo de quase 50% na venda de todos os carros). Mas também devido ao fim do estímulo, de 5 mil euros, que o Governo anterior aprovara, destinado a quem comprasse um veículo elétrico.
O toque a finados do projeto foi o cancelamento, pela Nissan, da construção de uma fábrica de baterias para estes carros, prevista para Cacia, Aveiro. O investimento “verde” está a ser substituído por uma “austeridade” cinzenta.
Qual o resultado de um investimento na sustentabilidade? Foi isso que um estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que imaginou como seria Espanha, em 2020, se fosse seguida uma política consistente de medidas ambientais, procurou perceber. Haveria mais emprego, para começar. Só a produção de energias renováveis poderia gerar 125 mil novos postos de trabalho. Em igual medida, “o número de empregos em atividades de serviços, indústria e construção de infraestruturas associadas ao transporte sustentável poderia aumentar 40%, para atingir 770 mil empregos”, avança o relatório. Outra área em evidência é a da reabilitação urbana que geraria até 1,37 milhões de postos de trabalho. O relatório da OIT conclui que “a transformação da economia em Espanha para uma economia ‘verde’ tem uma enorme potencialidade de criação de novos empregos, num momento em que o país regista uma taxa de desemprego jovem na ordem dos 50 por cento”.
A própria Comissão Europeia estima que o emprego nas chamadas “ecoindústrias ” registou um aumento médio anual correspondente a quase o triplo daquele que foi criado pela economia tradicional, entre 2000 e 2008. E em Portugal, a situação poderia ser semelhante? Viriato Soromenho-Marques responde: “Certamente que sim. A sustentabilidade não é uma política particular, mas uma maneira nova de pensar o Estado, a economia e a sociedade.
As políticas públicas de sustentabilidade permitem aumentar a prosperidade com menos consumo de matérias-primas, menos consumo de energia e menos produção de resíduos.
Com uma mobilidade mais racional e menos redundante. Mesmo neste contexto de crise, Portugal pode e deve investir nas frentes energética, alimentar, de recuperação das malhas urbanas degradas, na mobilidade sustentável, na economia do mar. A sustentabilidade rima com prosperidade. A mil anos luz desta austeridade que nos mata..” E voltamos ao início. O impasse português é o impasse europeu. É possível sair deste labirinto? “Temos de ser resilientes. Há duas coisas absolutamente certas. Para enfrentarem os desafios do futuro (da defesa à energia, da segurança alimentar ao ambiente e clima) e não serem reduzidos à pobreza e irrelevância, os europeus têm de tornar a União Europeia numa casa política habitável.
Numa república federal, e não numa masmorra onde presos e carcereiros, devedores e credores se ameaçam e agridem. A segunda certeza: mesmo que a rota suicidária corporizada na chanceler Merkel deite tudo a perder, no dia seguinte teremos de começar tudo, de novo. Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar uma catástrofe absurda.”