Reza a lenda que o rei D. Dinis foi atacado por um urso-pardo (
Ursus arctos) durante uma caçada e que, pedindo ajuda a S. Luís, seguiu os seus conselhos para que tirasse o punhal que tinha à cintura e matasse a fera. Baseado neste episódio heroico, supostamente passado no início do século XIV junto ao rio Guadiana, um dos suportes do túmulo de pedra deste rei representa a figura de um homem deitado dominado por um urso.
Quando não estão a ser esfaqueados por um membro de uma família real, os ursos-pardos passam parte do seu tempo a alimentar-se de diversas plantas, bagas, frutos secos, assim como de insetos, mamíferos e peixes. Nos meses mais frios, em que há maior escassez de alimento, hibernam numa cavidade natural e cuidam das crias que nascem entre janeiro e fevereiro. Segundo o que se vê nos desenhos animados, não é boa ideia incomodá-los nesta altura, a não ser que se queira tentar bater algum recorde de velocidade de corrida.
Independentemente da veracidade da história de fé e valentia de D. Dinis acima descrita, a presença de urso em território português até à Idade Média é incontestável. Por exemplo, muitos forais do século XI a XIII estipulavam a entrega das patas dos ursos caçados como tributo ao rei ou seus representantes, não para fazer amuletos de boa sorte gigantes, mas porque a carne de presunto de urso era muito apreciada. Dada a escassez deste omnívoro a partir do século XV, vários monarcas publicaram leis proibindo a população de o caçar, para que futuras gerações de reis portugueses o pudessem fazer. Para além destes documentos escritos, a sua presença é confirmada pela abundante toponímia que integra vocábulos como “osso” ou “urso”, pelos muros apiários (com altura por vezes superior a 3 metros) que protegiam as colmeias dos ataques de ursos em diversas regiões do país e pela descoberta de ossos deste predador em escavações arqueológicas relativos a este período.
No entanto, os portugueses associam mais facilmente os ursos a bonecos de peluche e a documentários de televisão, em que ocorrem verdadeiras chacinas de salmão, do que à floresta portuguesa. Uma das explicações para esta ausência da nossa memória coletiva poderá dever-se ao facto de esta extinção já ter ocorrido há bastante tempo. Porém, talvez não seja tão antiga como se pensava… Os especialistas consideravam que o último animal teria sido morto na Serra do Gerês em 1650, mas investigação recente revelou a ocorrência desta espécie no nosso país até provavelmente ao início do século XX. Assim, existem registos de presença de urso em zonas transfronteiriças em 1905 e 1920, a menos de 10 quilómetros da fronteira portuguesa na Serra de Montesinho (nordeste de Portugal), e de um abate de um macho em Junho de 1946, a menos de 5 quilómetros da fronteira portuguesa de Melgaço (noroeste de Portugal).
Em Espanha, o urso-pardo persiste em subpopulações pequenas e isoladas, que poderão extinguir-se a médio prazo devido sobretudo à sua baixa variabilidade genética. Por exemplo, nos Montes Cantábricos que se situam no norte deste país, existem duas populações (a oeste estimam-se 80-100 indivíduos e a este cerca de 20-30 indivíduos) separadas por barreiras geográficas que incluem uma estrada, uma linha de comboio e habitat com pouca qualidade, sendo assim possível distingui-las geneticamente. E foi através de um estudo genético aos pelos e dejetos de urso recolhidos nesta área que se descobriu que um macho da zona oeste ultrapassou todos os obstáculos para acasalar com uma fêmea da zona este, tendo nascido duas crias deste casal em 2008. Se pudermos facilitar a vida a ursos aventureiros para que outras histórias semelhantes possam acontecer, talvez a sua subsistência seja possível.
De qualquer forma, o urso-pardo continua a ter uma ampla distribuição mundial, habitando zonas geralmente remotas da América do Norte, Europa e Ásia. Portanto, mesmo que nunca tenhamos oportunidade de observar um destes animais em liberdade, poderemos sempre continuar a vê-los na televisão e a acompanhar a sua já longa carreira como bonecos de peluche.
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