Quando se fala de ambiente há uma certa tendência para se cair num moralismo fácil que irrita muitas pessoas. No entanto, a sustentabilidade faz-nos certas exigências éticas que não deveríamos ignorar como se não fosse nada connosco. A nossa sociedade de consumo, tecnológica, materialista, gastadora de recursos e utilizadora de mais do um planeta que temos, a isso nos obriga. Esta nossa atitude displicente relativamente ao planeta e às gerações futuras está assente numa cultura em que se ignora a pressão sobre os ecossistemas e em que não damos suficiente ênfase a questões de equidade, intra e inter geracionais. Mas como é que se potencia uma reflexão sobre estas temáticas sem se ser moralista/irritante? Como é que se chama a atenção a consumidores imaturos? Como é que se ultrapassa uma certa ignorância e uma certa demissão de uma reflexão ética sobre questões ligadas à sustentabilidade? A literatura é sempre uma resposta a considerar. Se nas crónicas anteriores sempre utilizei livros para depois falar de ambiente, nesta utilizo o ambiente para falar de um livro. Um livro que fala da problemática da sustentabilidade, dos males da nossa sociedade tecnológica e da falta de equilíbrio das nossas vidas. Eça de Queirós não era certamente um ambientalista, mas aproximou-se perigosamente disso com um dos seus últimos livros.
“A Cidade e As Serras” conta-nos a história de Jacinto, nascido e criado na opulência de Paris mas com riqueza produzida nas “terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olivados” dos seus antepassados em Portugal. Quando jovem, Jacinto acha que só podemos ser felizes aliando a cultura à técnica, e consequentemente gasta a sua elevada renda anual em livros e em todos os gadgets da altura. O sumptuoso 202, nos Campos Elísios, era uma montra de progresso técnico, com electricidade, elevador, telefone, telégrafo, conferençofone, teatrofone, máquina de escrever, máquina de calcular, e uma biblioteca com mais de trinta mil volumes. No entanto, Jacinto passa a sua sumptuosa vida a exclamar “que maçada” a tudo o que o rodeia e a tudo o que lhe acontece.
Aos 34 anos, pela primeira vez, Jacinto resolve vir a Portugal, a Tormes. Previne por carta o seu procurador da viagem, encomendando-lhe obras à casa da Serra e envia 3 dezenas de caixotes com o indispensável para os seus pequenos confortos. Parte uns meses depois com 23 malas para uma estadia estival no Douro. Uma série de percalços determinam que Jacinto chegue a Tormes sem que ninguém o espere, tendo-se as 23 malas transviado e os caixotes desaparecido algures entre Paris e Tormes. Apenas com a roupa que tem no corpo, Jacinto chega a uma casa em ruínas, sem mobília e sem que ninguém saiba que ele está a chegar. A carta também se tinha perdido e as obras na casa ainda nem tinham começado e é assim que o mais dandy de todos os parisienses se vê compelido a dormir num colchão improvisado com roupas emprestadas dos caseiros.
A sua primeira surpresa é o jantar. O seu cozinheiro também se tinha perdido com as 23 malas e o seu criado pessoal na viagem de comboio. Mas o caldo de galinha, o arroz de favas e o frango assado no espeto regados por um “vinho com alma”, suplantaram os pratos mais gourmets de Paris e despertaram-lhe um apetite ancestral. Jacinto foi-se deixando seduzir, pelos cheiros, pelas cores, pelas estrelas, pelo ar da Serra e nunca mais de lá saiu. Ganhou amor à serra e aos campos, e começou a sentir-se “desanuviado e desenvencilhado”. Ter só uma escova em vez de trinta dava-lhe um descanso até ali desconhecido. A serra transmitia-lhe pensamentos de liberdade e de paz e gozava a sua frescura e silêncio como nunca tinha imaginado. Num devaneio de responsabilidade social mandou construir casas para todos os seus vinte sete rendeiros que viviam miseravelmente, deu-lhes mobílias e melhorou os seus contratos para que não fossem tão pobres. Gastou apenas cerca de seis mil reis, dos mais de cem que recebia anualmente, transformando Tormes, suas gentes, ele próprio e a nós, leitores que ainda acreditamos que os sistemas que existem são extanques e inquebráveis.
Eça de Queirós escreveu A cidade e as serras no final do século XIX mas há descrições que parecem escritas ontem, tal a actualidade das suas observações. Eça antevia que a técnica e o progresso eram, no fundo, mais vazios do que as promessas de um novo mundo que vaticinavam. O reencontro com o campo, com a simplicidade, com a qualidade fizeram-no ver a vacuidade de uma riqueza material estéril. O olhar atento de Eça transmite-nos ainda a falta de sentido crítico, mesmo num Jacinto com uma cultura inigualável, de que todos ainda padecemos.
E mais não digo para não ser demasiado moralista. Leiam A Cidade e as Serras! Diz melhor tudo o que posso escrever e é um prazer segui-lo de Paris a Tormes, da civilização sofisticada parisiense à simples rusticidade portuguesa. Por uma vez, Eça rende-se à última, abstendo-se da crítica mordaz ao seu e nosso Portugal. Os leitores ficam, tal como o seu amigo e narrador, Zé Fernandes, convencidos que vir da cidade para a serra é, afinal, uma promoção e uma viagem de descoberta interior: “então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida”.