Como nos bons velhos tempos, uma cegonha preta paira sobre as águas do rio Sabor e acaba por poisar numa rocha, na margem esquerda. Não usa capacete de proteção. Talvez precisasse porque, a poucos metros, manobram dumpers, retroescavadoras, escavadoras giratórias, bulldozers, máquinas de furação com dois braços articulados, que fazem buracos nas rochas onde serão colocados explosivos e. bum! É o fim de um cenário idílico?
Definitivamente, garantem os ambientalistas. Nada disso, sublinham os promotores das barragens, trazendo à memória a paisagem daquele grande lago que é agora o Alqueva, obra do Homem, enchendo de azul o Alentejo das searas. Nestas grandes obras nada é a preto ou branco. A ancestral tensão entre o progresso e a Natureza vem acompanhada de inúmeros pontos de vista a ter em conta o património natural e cultural, a dependência energética do País em relação ao exterior, o Protocolo de Quioto, o desenvolvimento das populações, a economia local e a nacional… Daqui a três anos, no Sabor, que ganhou o título de “último rio selvagem de Portugal “, uma albufeira que se estenderá por 60 quilómetros, capaz de armazenar mil milhões de metros cúbicos de água (o Alqueva tem uma capacidade superior a 4 mil milhões), mudará a face do Nordeste transmontano.
Por agora, o que se vê são montes esventrados, máquinas a desafiar a gravidade, perfuradoras a quebrar o granito e camiões num interminável sobe e desce de encostas, carregando escombros. Assiste-se também a uma certa azáfama no comércio local: os restaurantes ganharam mais clientes e algumas empresas da zona têm mais trabalho, na área dos serviços, da serralharia e do aluguer de equipamentos.
“De certo modo, a crise tem passado ao lado de Torre de Moncorvo. A área da restauração e similares tem-se mantido e é difícil encontrar uma casa para alugar. O desemprego também estabilizou abaixo dos dois dígitos e da média nacional”, afirma o presidente da Câmara Municipal, Fernando Aires Ferreira. Será que tudo isto compensa os danos ecológicos denunciados pelos ambientalistas? Não há consensos à vista.
A BARRAGEM E A ALDEIA
O que está à vista é um enorme estaleiro, que inclui uma central de fabrico de betão e a maior central de britagem do País. Aí se acumulam pilhas de brita, com 20 metros, oriundas da pedreira de granito. Se rão usadas no fabrico de betão que, entre outras funcionalidades, começará, ainda este ano, a encher o paredão da barragem, com 123 metros de altura. A luta, agora, é com o maciço de granito, abrindo, com explosivos, túneis por onde passará a água, para ser turbinada num poço a 60 metros de profundidade.
O Baixo Sabor abarca, na verdade, duas barragens, que distam nove quilómetros uma da outra. A mais pequena, mesmo junto da foz do rio, terá um paredão de apenas 40 metros. Ficarão ligadas por uma nova estrada que a EDP está a construir. Mas a “herança” que o presidente da Câmara de Moncorvo destaca é a construção de um centro de interpretação ambiental e recuperação animal, na freguesia de Felgar. Aires Ferreira atribui mais danos ambientais às alterações climáticas (e consequentes secas) do que à construção da barragem. Para o futuro do concelho idealiza a criação de uma área protegida, em torno da nova obra, que possa ser aproveitada pelo turismo. Entretanto, no pico da construção, previsto para 2011, 1 675 trabalhadores invadirão os montes calmos de Torre de Moncorvo.
O consórcio construtor (o grupo Lena e a Bento Pedroso Construções, do grupo brasileiro Odebrecht) orgulha-se de incluir entre os seus efetivos (atualmente 300) mão-de-obra do distrito de Bragança (38%) e de Vila Real (18 por cento). O emprego é uma mais-valia económica das grandes barragens, embora transitória, pois só tem impacto enquanto dura a obra. Mas dá “empurrões” importantes. Por exemplo, para fazer a limpeza dos dormitórios dos trabalhadores, foi criada uma pequena empresa local que já emprega 19 pessoas. O consórcio optou por alojar os seus quadros técnicos num antigo bairro mineiro, recuperando 26 casas que, finda a obra, deixará a uma sociedade hoteleira para serem exploradas a nível turístico. Já os restantes trabalhadores ficam em dormitórios, dois por quarto, num local onde os serviços incluem uma cantina, um centro de saúde, um centro de Novas Oportunidades (com duas turmas, uma no 9.º ano; a outra no 12.º), um campo de futebol, uma sala de jogos…
Tudo o que a aldeia da Póvoa, a poucos metros, não tem. Com os seus 12 habitantes, as casas de pedra, as ruas de terra batida com grandes buracos a céu aberto das intermináveis obras para ali levar o saneamento, parece uma povoação perdida no tempo, a apanhar com a poeira do progresso. António Santos, agricultor, 49 anos, e José Carlos Santos, soldador, 44 anos, não amaldiçoam a nova barragem. Vai longe o tempo em que davam mergulhos no Sabor, sem conhecerem a palavra poluição. “O investimento na agricultura é que era fundamental. Só não há quem o faça”, lamenta o soldador.
ARMAZÉNS DE ENERGIA
Também a agricultura foi deixando as margens do Sabor, à exceção do olival e da amendoal. Ao contrário do Alqueva, o regadio não é uma valência prioritária da nova barragem. Mas, num aspeto, as duas obras são parecidas. “Diz-se e com razão que a barragem do Baixo Sabor não produzirá grande quantidade de energia “, reconhece Carvalho Bastos, diretor da obra, esclarecendo: “Porque o objetivo principal é a constituição de uma reserva de água no Alto Douro.” A reserva, além de abastecer as populações em caso de seca, tem como primordial vantagem o armazenamento de energia. É que nem o vento nem o sol se podem “guardar”.
Quando há muita produção e pouco consumo (por exemplo, em noites ventosas, as eólicas estão a funcionar, mas os consumidores não as aproveitam), a energia é desperdiçada. Já a água pode ser armazenada nas albufeiras.
E uma barragem com os dois sistemas de turbinagem e bombagem ainda recupera o desperdício das eólicas, funcionando “ao contrário”. Ou seja, em certas alturas, em vez de turbinar a água e produzir mais, usa a energia das eólicas, enviada através da rede, para bombear a água para a albufeira, armazenando-a à espera de períodos de maior consumo.
Sem esta valência, talvez a EDP pensasse melhor, antes de investir 491 milhões de euros para uma produção líquida anual de 230 gigawatts por hora, o que dá para o consumo de cerca de 200 mil pessoas. São muito poucas as barragens com capacidade de armazenamento e a do Alqueva é a mais emblemática. É certo que os ambientalistas não consideram a energia produzida pelas grandes barragens nem verde nem sustentável.
Mas para a EDP, ela é, sem dúvida uma energia limpa. “A barragem do Baixo Sabor vai evitar a emissão de 1 037 kt [pouco mais de um milhão de toneladas] de CO2, por comparação com a mesma energia produzida por uma central térmica a carvão, como em Sines”, sublinha Carvalho Bastos. A empresa encerrou recentemente a central térmica do Barreiro, prepara-se para fechar a do Carregado e a de Setúbal e investiu 100 milhões de euros para tornar a de Sines menos poluidora.
O PATRIMÓNIO NATURAL
Apesar disso, para três ativistas contactados pela VISÃO (João Joanaz de Melo, da GEOTA, Eugénio Sequeira, da Liga para a Proteção da Natureza, e Melissa Shinn, da Quercus), o melhor investimento seria na poupança de eletricidade, no “uso eficiente” da energia e na “microgeração, com mini-hídricas que não interrompem os cursos de água”. Várias empresas e municípios exploram centrais mini-hídricas, cuja potência é inferior a 10 megawatts, mas no que diz respeito às grandes barragens, a EDP é dominadora. O Programa Nacional de Barragens, no entanto, atribuiu, recentemente, a exploração de quatro novas obras à Iberdrola (nos rios Tâmega, Beça e Torno) e uma à Endesa (no Mondego), cujos trabalhos deverão ter início no próximo ano.
“Na maioria das barragens mais recentes, incluindo em especial o Sabor, os impactos são enormíssimos: aumento da erosão costeira por redução dos sedimentos transportados, redução da produtividade dos estuários com efeitos prováveis nas nurseries das espécies piscícolas, destruição dos ecossistemas ripícolas (galerias, corredores ecológicos) e dos habitats classificados, bem como da paisagem, contribuição para a degradação dos solos de melhor qualidade…”, enumeram os três ambientalistas.
No Baixo Sabor estão em causa os locais de nidificação da cegonha negra e de grandes aves de rapina, como a águia-real. “Além disso, a toupeira da água, espécie rara e ameaçada, vai desaparecer, e o peixe barbo perderá zonas de desova”, descreve Paulo Santos, da Plataforma Sabor Livre.
Já Lopes dos Santos, diretor do projeto do Sabor, tem outra perspetiva: “Onde existe um rio que corre, passa a haver uma albufeira. Os nossos estudos mostram que a maior parte da fauna e da flora se adapta à nova fórmula.” Este engenheiro da EDP descreve algumas medidas de compensação ambientais, tomadas durante a obra. “Se abatemos espécies protegidas, como a azinheira e o sobreiro, voltamos a plantar na mesma quantidade mais 1,25 por cento. Outro exemplo é a criação de um habitat para a fauna piscícola, em especial para o barbo, cujo local de desova desapareceu construímos um túnel que injeta água na ribeira da Vilariça, reproduzindo as mesmas condições”, garante.
Paulo Santos, no entanto, considera que as medidas de compensação “cobrem uma mínima parte do que vai ser afetado. “O que desaparece com as barragens são os fundos dos vales característicos de cada região. São substituídos por um lago, que é igual em toda a parte. As novas espécies aquáticas que irão surgir são as mais abundantes “, contesta. Tudo é matéria sensível, quando se constrói uma grande barragem. E a do Sabor, que fez correr rios de tinta em polémicas ambientais (a obra afeta zonas integradas na Rede Natura) ainda mais.
Agora é a nova barragem da Foz do Tua que está no centro das atenções. Obra da EDP (que, este mês, abre as propostas dos consórcios de construção), vai submergir parte da linha de comboio centenária, no troço que liga a foz do rio a Mirandela. Mas o Estado português terá de enfrentar ainda a UNESCO, uma vez que, além disso, a barragem inundará uma parte do Douro vinhateiro, património da Humanidade.
DO DOURO AO ALQUEVA
Para os ambientalistas, o re-equipamento de barragens existentes será sempre “mais benigno” do que a construção de novas albufeiras. No Douro Internacional, Picote e Bemposta, construídas durante o Estado Novo, estão em obras, para reforçar a potência. Isso significa que vão deixar de desperdiçar tanta água em descargas. A capacidade dos atuais equipamentos não é suficiente para o aproveitamento do caudal, o que obriga à abertura das comportas, pois, de outra forma, o rio galgaria as margens.
“O grande impacto ambiental das obras é o da escombreira [monte de escombros] “, afirma António Freitas da Costa, diretor de ambos os projetos. “Mas, no caso de Picote, temos um acordo com uma empresa local, que vai levar o material em camiões, britá-lo e voltar a vendê-lo para as nossas obras. Em Bemposta, uma empresa de construção está a britar todo o material e a levá-lo para as obras da IC5”, explica.
O Alqueva também se encontra em obras de reforço de potência. Ali se trabalhou 30 metros abaixo do nível de água, se fez uma ensecadeira com 114 vigas de 20 toneladas cada uma e se escavaram 550 mil metros cúbicos de rocha números ao nível da dimensão do maior reservatório artificial da Europa. É um facto que a missão de regadio agrícola do grande lago está longe de se cumprir; por outro lado, torna-se mais visível a potencialidade turística da albufeira cujo aproveitamento é há muito reivindicado pelas populações.
Para os ambientalistas, esta é uma guerra perdida? Digamos que a pressa do Governo em diminuir as emissões de CO2, para cumprir o Protocolo de Quioto, e os dez novos aproveitamentos hidroelétricos aprovados pelo Programa Nacional de Barragens vão, no mínimo, dar muito trabalho aos ativistas, nos próximos tempos.