Com uma experiência de mais de duas décadas a estudar os impactos das alterações climáticas, Pedro Matos Soares é um dos cientistas portugueses mais respeitados na área. Em entrevista à VISÃO, o investigador principal no Instituto D. Luiz, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fala sobre os sinais mais preocupantes que já se sentem hoje, aponta o que tem falhado na redução de emissões e sugere alguns caminhos que podem ser tomados para suavizar o problema. E sublinha que não há desculpas para a inação: ninguém pode dizer que os avisos não foram dados.
O investigador é o conferencista principal da conferência internacional “De hoje até 2050: a urgência de reconhecer que o Planeta está a mudar”, nos Montes Claros, em Monsanto, Lisboa, esta quinta-feira, a partir das nove da manhã.
Hoje a Organização Meteorológica Mundial disse que há 66% de possibilidade de um dos próximos 5 anos, incluindo este, atingir um aumento de temperatura de 1,5º C. A acontecer, é significativo?
É significativo. Uma grande ambição da nossa sociedade era mantermos a temperatura média global abaixo de 1.5º C, pelo Acordo de Paris. Exceder esse limite num ano não é o mesmo que numa média climatológica de 30 anos, que é o que está em causa quando falamos desse limiar. Não equivale a dizer que Paris foi ultrapassado. Mas do ponto de vista simbólico é muito relevante. Quer dizer que há aqui um processo de aceleração do aumento da temperatura. Mas não podemos entrar na lógica de desresponsabilização, que é falar da hipotética irreversibilidade. Há ainda muito que se pode fazer, apesar de não estarmos numa trajetória de decréscimo das emissões. Ainda hoje fui ver os registos das concentrações de CO2: estamos nas 426 partes por milhão, que é uma coisa inaudita nos últimos 800 mil anos da Terra. Infelizmente, estamos neste crescimento de concentrações e de crescimento do efeito de estufa e de aumento de temperatura. O que há aqui de muito significativo é que, de facto, ano após ano, estamos a bater estes recordes, o que é assustador.
Temos visto sempre muito otimismo e promessas por parte de responsáveis políticos, nomeadamente cada vez que há uma cimeira do clima. Mas as ações não acompanham a retórica…
No seu conjunto, as emissões estão a aumentar, à excepção dos anos pandémicos. Observamos que há uma disjunção entre o processo de crescimento das emissões e a ação política. Os números assim o mostram. Agora, não podemos deixar de observar que a Europa, os Estados Unidos e outros países desenvolvidos têm tido uma política de redução das emissões. O problema é que temos um globo com outros atores económicos muito importantes, como a China, como a Índia e a própria Rússia.
A UE tem estado efetivamente na linha da frente da descarbonização. Por outro lado, a China continua a apostar fortemente no carvão. Muitos europeus podem pensar que tudo isto é em vão. É?
Não. Vivemos numa economia global. Não podemos estar sempre a falar da interdependência das economias e depois dizer que, se um bloco económico relevante atua num certo sentido, isso não influencia as outras economias. A UE, os Estados Unidos e o Canadá e outros países têm um papel muito importante no forçar de uma economia descarbonizada. Claro que precisamos de taxar o carbono e de deixar de deslocalizar parte da nossa economia para esses países que são grandes emissores, o que é um contrassenso.
O caminho passa por taxas de carbono que penalizem produtos vindos de economias menos preocupadas com este problema?
Sem dúvida nenhuma. Não podemos patrocinar atividades económicas que têm uma clara externalidade, que é o aquecimento global e todos os seus impactos. Temos de associar aos custos económicos de uma atividade as suas emissões de carbono. Enquanto não integramos isso no nosso desenvolvimento económico, não conseguimos ter uma redução de emissões.
O mundo empresarial está desperto para os impactos das alterações climáticas? Mais do que isso, está efetivamente a fazer a sua parte?
Temos alguns bons exemplos e muitos maus exemplos. Há, sem dúvida, uma consciencialização diferente nos quadros, nas lideranças da nossa economia. Há também uma consciencialização da sociedade, em termos europeus e mundiais, muito diferente da que tínhamos há 10 anos. Mas há também um coeficiente de inação muito grande. Temos empresários que estão a fazer um caminho de descarbonização, mas temos muitas empresas que não o fazem, até pelas suas próprias dificuldades de desenvolvimento. Há bastantes exemplos de greenwashing. Mas os nossos economistas e gestores têm de perceber que hoje a sociedade está alerta e escrutina. E atualmente não podemos falar em desconhecimento. Há 20 anos, sim, este era um tema muito ligado ao mundo académico. Mas hoje ninguém pode alegar que não sabia.
E, no entanto, tivemos esta semana um membro da Reserva Federal Americana a dizer que as alterações climáticas não são um risco sério para a estabilidade financeira global…
Bom a Administração Biden já disse que as alterações climáticas eram uma questão de segurança nacional dos Estados Unidos… Podemos ter opiniões para todos os gostos e continuar o debate público. Vamos ter sempre. Mas hoje em dia é consensual, do ponto de vista científico, técnico e societal, que estamos num processo de alterações climáticas. E temos de nos responsabilizar por isso. Nós, os países desenvolvidos, fomos os grandes responsáveis históricos pelas alterações climáticas. Mas também não podemos só falar de uma responsabilidade histórica. Há uma responsabilidade presente. E os nossos líderes têm de ser chamados à responsabilização.
Hoje, o desconhecimento já não é desculpa?
Obviamente que não. Há 20 anos havia já um conhecimento robusto neste processo, mas era muito académico. Hoje não. As pessoas sentem o problema já diretamente as suas sociedades, veem os impactos das alterações climáticas, os desastres naturais que já são atribuíveis ao aquecimento.
Quais são os setores que podem sofrer mais com os impactos das alterações climáticas?
Depende muito da região do mundo. Os impactos das alterações climáticas são muito diferenciados em termos globais. Mas o grande problema é a água e os desastres naturais com efeitos diretos em vidas e em infraestruturas. Estou a falar de precipitações elevadas, de grandes tempestades furacões, com impactos vertiginosos do ponto de vista económico, além dos indiretos, com interrupção de produtividade, de produção elétrica, os problemas mentais associados… E no outro extremo a seca. E nós em Portugal estamos agora a ter laivos do que pode ser o nosso futuro.
Mas a verdade é que as pessoas não o sentem no dia a dia, e acabam por desvalorizar a seca. A água não deixa de jorrar da torneira. O problema é ao nível da agricultura. Como é que podemos fazer as pessoas sentirem a escassez?
Enquanto a água jorrar nas torneiras, é muito difícil de consciencializar uma pessoa urbana. O ano passado tivemos uma das piores secas de sempre em Portugal, toda a gente estava aflitíssima e as pessoas perceberam que a energia teve custos adicionais devido à interrupção da produção hidroeléctrica em algumas barragens. Mas depois tivemos a precipitação do outono/inverno e tudo se esqueceu. Na verdade, passado cinco meses, já estamos outra vez com seca severa em Portugal em boa parte do nosso território. A agricultura portuguesa pode sofrer imenso com a escassez de água, as florestas também. Mas a sociedade muitas vezes falha em mostrar isto. A verdade é que só quando sofremos diretamente as consequências de um problema é que somos sensíveis a esse problema.
Em abril, foram batidos numerosos recordes de temperatura. É um sintoma das alterações climáticas?
Para fazermos uma relação de causa-efeito direta, temos de fazer a modelação do que se passou em abril com e sem as emissões antropogénicas e calcular a probabilidade de ocorrência. Isso não foi feito, mas já foi feito para muitas ondas de calor em termos europeus nos últimos anos, e a verdade é que a multiplicação da probabilidade é enorme e está diretamente associada às alterações climáticas. Neste caso em particular em Portugal, destas ondas de calor, esse exercício não foi feito do ponto de vista científico. Agora não há dúvida nenhuma que as peças encaixam e nós estamos a viver uma primavera que os modelos há uns anos projetavam: um verão mais extenso no nosso ciclo anual, com temperaturas mais quentes mais cedo no ano e ondas de calor na primavera. Falámos de tudo isto há 10 e 20 anos. Ou seja, encaixa-se perfeitamente no que eram as projeções dos modelos regionais de clima que nós divulgámos à sociedade.
Não há nenhuma razão para estarmos surpreendidos.
Eu não estou nada surpreendido.
Depois de uma múltipla La Niña, prevê-se o regresso este ano do El Niño. Que efeitos terá na meteorologia?
O El Niño é uma anomalia de temperatura no Pacífico, que pode ser muito intenso e que, de facto, está associado a grandes perturbações nos padrões de precipitação e de temperatura em termos globais, mas muito mais na bacia do Pacífico. Zonas da bacia do Pacífico têm grandes probabilidades de inundações e, no caso da Austrália, de secas. Mas atenção, às vezes há aqui um certo alarmismo. Não existe robustez científica na análise de perturbações que apontem para grandes eventos extremos em Portugal influenciados diretamente pelo El Niño. Existem algumas indicações, mas não são estatisticamente robustas.