Um artigo publicado hoje, dia 5 de Fevereiro, está a fazer furor nos meios de comunicação social, com títulos como “Covid-19: Alterações climáticas podem ter impulsionado aparecimento do SARS-Cov-2”. Ora, para parafrasear Mark Twain, podemos bem dizer que estas notícias são manifestamente especulativas.
Vejamos então. Neste artigo, disponibilizado hoje na revista Science of the Total Environment, cientistas da reputada Universidade de Cambridge alegadamente encontram uma relação entre alterações climáticas e o aparecimento do SARS-Cov-2, o vírus que causou a pandemia de COVID-19.
Infelizmente, este artigo está mais próximo de um artigo especulativo do que de investigação científica de qualidade. Vejamos porquê.
O artigo parte, e bem, da hipótese razoavelmente aceite da relação entre morcegos e o aparecimento do SARS-Cov-2, dado o facto de os morcegos, no seu conjunto, albergarem cerca de 3000 tipos diferentes de coronavírus, tendo cada espécie de morcego em média 2,7 vírus deste tipo . É assim plausível que um aumento no número de espécies de morcegos num local aumente a probabilidade de que haja transmissão de coronavírus para humanos.
Os autores foram então explorar a hipótese de que as alterações climáticas tivessem provocado um aumento no número de espécies de morcegos na região onde surgiu o COVID-19.
Primeiro, criaram um mapa mundial da vegetação de há um século, usando registo históricos de temperatura, precipitação e cobertura do céu com nuvens; note-se que é um mapa para o qual não usaram evidência nenhuma directa de qual era a vegetação e que tiveram que usar uma variável crítica, a cobertura do céu com nuvens, para a qual os dados históricos são de muito má qualidade (como observou Dann Mitchell, especialista em clima da Universidade de Bristol).
Segundo, utilizaram modelos estatísticos que relacionam a distribuição dos morcegos com a vegetação, para inferirem qual seria a distribuição das espécies de morcegos em 1900 e depois compararem com a distribuição actual. No entanto, os dados que utilizaram para inferir a relação entre a distribuição de morcegos e a vegetação são extremamente problemáticos. De acordo com Matthew Struebig, da Universidade de Kent, membro do grupo especialista em morcegos da International Union for the Conservation of Nature, que produziu estes mesmos dados, eles são “grosseiramente insuficientes”. Diz este especialista que “muitas das espécies de morcegos não foram plenamente avaliadas e muitas são tão mal conhecidas que estão documentadas unicamente como uns quantos pontos num mapa. Muito pouco se sabe sobre os tipos de vegetação óptimos ou preferidos – especialmente na região considerada no estudo.”
Ainda de acordo com Matthew Struebig, este artigo “estima que a fauna de morcegos no sul da China e em países vizinhos teria aumentado de um incrível número de mais de 40 espécies em cerca de 120 anos [desde 1900].” Isto significaria que, por exemplo, o número de espécies de morcegos em Myanmar teria duplicado em pouco mais de um século. “Simplesmente olhar para trás para registos antigos de ocorrência das espécies e estudos ecológicos da região mostra que isto pura e simplesmente não aconteceu”, acrescenta ainda.
Em suma, utilizando relações incertas entre clima e vegetação e relações implausíveis entre vegetação e número de espécies de morcegos, os autores deste artigo chegam à conclusão de que as alterações climáticas podem ter causado a actual pandemia.
Ora quando, e bem, o grito de guerra do combate às alterações climáticas é “oiçam os cientistas”, a ciência deve ser responsável, e garantir que disponibiliza para o público conclusões sólidas, em vez de procurar títulos fáceis, que captam a atenção da comunicação social. Não é o caso deste artigo.