“Com o seu olhar feroz, parte a loiça sem apelo nem agravo.” Esta frase ainda ecoava no Planetário de Marinha, em Lisboa, quando Joana Marques subiu ao palco. E, logo aos primeiros segundos da edição especial ao vivo da sua corrosiva coluna na revista, a humorista residente da VISÃO pôs a assistência a rir.
“Fiquei assustada”, confessou. “Parecia que vinha aí o exterminador implacável e eu não me vejo assim.”
Uma voz off anunciara-a brevemente, lembrando que ela critica de forma implacável figuras nacionais e internacionais, e com uma única condição: a liberdade. No fundo, como um elefante na sala, título da sua crónica semanal na VISÃO que leva tanta gente a começar a ler a revista pelo fim.
Foi o que também aconteceu ao vivo e a cores, numa conferência em jeito de stand-up, à boleia do programa da VISÃO Fest e do tema “Visão do futuro”.
“Depois da alta cultura, vem a baixa cultura”, começou ela por ironizar. “Para a Joana Marques é mais um sábado, para mim é mais difícil”, riu-se o jornalista Nuno Aguiar, encarregado de moderar a conversa, à boleia do programa, por sugestão da humorista.
Queríamos todos saber como ela vê o futuro, a abrir o que lhe passou pela cabeça quando recebeu o convite para a VISÃO Fest. “Marcar férias para não vir, tentei várias desculpas diferentes… Era um desafio demasiado vago, se calhar começo por amanhã, que é domingo. E, olhando para o programa, hoje tivemos o Pedro Adão e Silva a abrir, amanhã é o Marcelo a fechar, nada contra, mas está um bocadinho desnivelado. Embora o Pedro Adão e Silva faça sentido porque passou muito tempo a preparar 2024.”
Ai a loiça, ai a loiça. Daqui para a frente, a humorista mostrou que não ia poupar nas farpas.
O ministro da Cultura “que sucedeu a Graça Fonseca, fazer pior é impossível”, teve mais facilidade do que ela que sucedeu ao Ricardo Araújo Pereira. “Achei até que devia ter havido um período de nojo, um ano com o Eduardo Cabrita a fazer a crónica. Pensei: quem tem mais anticorpos do que eu? E ele tem anticorpos de verdade porque sobreviveu a tudo. As pessoas não acham inspirador, o herói que sobrevive?”
Ai a loiça e a ironia, por favor, a ironia.
Joana Marques segue para o tema das redes sociais, que vê cheias de futuro. “O Mark Zuckerberg vai continuar a comprar novas redes sociais, acho que ganha mais com a raiva e com o ódio. As redes sociais são um ótimo repositório da raiva das pessoas, antes só tínhamos o trânsito. E são como as crianças: fazem muito barulho e são um sinal da passagem do tempo.”
“Agora, sinto que sou muito nova para o Facebook, e nas outras sou muito velha. O TikTok, nem percebo. Acho que é para quem não sabe escrever, mas pode ser a visão de quem não faz parte, com alguma inveja. E aquilo do Be Real? Uma das câmaras do telemóvel ia captar-nos a nós, Nuno, e a outra a plateia que é das plateias mais difíceis que já tive porque as pessoas estão todas deitadas, não as vemos bem, até já podem estar a dormir.” [no Planetário, a inclinação das cadeiras é grande para que a plateia olhe o ‘céu’]
A propósito das redes sociais, Joana Marques acredita que a ironia tem os dias contados porque há uma certa tendência para a literalidade. “Antes das redes sociais, as opiniões não chegavam a nós. Eu gostava mais dos tempos em que o humorista fazia uma piada e as pessoas gostavam ou não, mas agora as pessoas não percebem. Nem sequer que era a gozar.”
“Veem Joana Marques vírgula humorista e mesmo assim não percebem que é a brincar. Acho intrigante. Se calhar, não podemos falar da ironia só nas aulas de Português, os miúdos têm de ter uma cadeira dedicada à ironia.”
Quanto ao futebol, e a ligação direta foi a da violência, umas horas depois de o “seu” Porto perder, foi quase maldade perguntar-lhe como vê o futuro do futebol. Mas Joana Marques não chuta para canto.
“O futebol não devia ter futuro. Sofro muito mesmo quando ganhamos porque a alegria dura cinco segundos e… agora vem outro. Começa tudo outra vez. São anos de angústia. Ontem, infelizmente vi e acho que o futebol devia acabar. Desgasta. Não sei se a alegria compensa. Tenho esse sonho de o futebol acabar, ficávamos com uma memória boa, como os Descobrimentos (um bocadinho mais polémicos).”
De violência em violência, e a Igreja? A sua crónica na edição da VISÃO que está nas bancas é dedicada a Manuel Linda, que pôs ao mesmo nível os abusos sexuais na Igreja e as pessoas a tratarem os cães e os gatos como filhos. No Planetário, ataca novamente:
“Achei o seu texto muito curioso. Escreveu ‘Era um dia destinado a grandes emoções’ e, depois de contar a história de uma miúda com leucemia, conta que viu um casal a passear dois cães em carrinhos de bebé?! Achei bizarro o funcionamento do cérebro do bispo Manuel Linda. Já sabíamos que era um cérebro que devia ser estudado… não se lembrava da denúncia de uma rapariga.”
Então, e como vai ser o futuro da Igreja? A humorista não hesita – e aqui não lhe encontramos nenhuma ironia:
“Podiam aplicar o voto de silêncio, pelo menos a alguns bispos. Se é isso que têm para dizer, preferimos não ouvir. O bispo Manuel Linda disse ‘Não garanto que não haja alguma asneira ou outra’. A escolha das palavras… Asneira?! O abuso sexual é um crime. Sobretudo agora que temos o Papa Francisco com a ideia de que a Igreja se pode renovar e atualizar. Queremos menos silêncio das vítimas (mais investigação) e mais silêncio dos padres.”
A procissão já passara do adro, mas ainda aí vinha (ou não) o novo aeroporto de Lisboa. “Se calhar, devia estar aqui a Maia”, goza, na falta de bolas de cristal. “Mas acho que não vai haver”, diz, e faz uma analogia: “Um dia, o meu pai prometeu-me que ia fazer uma casa de bonecas de madeira, mas os anos foram passando e nada. Eu, aos 13 anos, já não queria. Em Portugal, vai passar-se o mesmo – teremos menos turistas porque vão ver que Lisboa não é nada de especial, e os portugueses não vão ter poder de compra para ir a lado nenhum. O aeroporto da Portela vai servir perfeitamente e até vai estar às moscas. Parece como as dietas – segunda-feira é que vai ser, e com muitas opções. E é como a terceira travessia do Tejo – não vai acontecer.”
Certo é que estávamos todos sem máscara no Planetário, a expelir partículas como se não houvesse amanhã. “Já nem lavamos as mãos”, goza. “Mas devia vir outra pandemia para quando estivermos fartos uns dos outros. Eu estava grávida e sou hipocondríaca. Tive uma experiência de prisão domiciliária e adorei. E também adorei os negacionistas que vieram em força, tínhamos um por área – havia o juiz, a médica… Falo no passado porque eles já não podem exercer.”
E que futuro vê Joana Marques para Cristina Ferreira, além de ela escrever os seus discursos? “Ela faz uma espécie de VISÃO Fest, os Cristina Talks, o primeiro foi em Gondomar, em janeiro é em Lisboa. Vem aí um Plano B – acho que vai haver uma tournée gigante da Cristina a contar a sua história, que tem o problema de ser sempre a mesma, mas a coisa funciona. Uma Cristina Ferreira como guru espiritual. E não acho que corra mal (o Gustavo Santos deve estar preocupado).”
“E agora vamos quebrar a regra e falar numa pessoa que não tem futuro – o Cristiano Ronaldo?”, pica Nuno Aguiar. “É sacrilégio dizer alguma coisa má sobre ele, mas não vejo um futuro risonho”, confessa a humorista. “É como aquelas bandas que não sabem retirar-se a tempo. Ele tem tido muitos problemas de timing, agora é o primeiro a abandonar os jogos. É meio triste acabar assim a carreira, fica um sabor amargo.”
“Ele pode brilhar neste Mundial… no banco. Acho que ele é bom a mandar. O Cristiano Ronaldo em 2016 estava como adjunto de Fernando Santos a mandar. Ótima ideia para o futuro, e ele assim não tinha de fazer nada, o que é positivo. É um bom futuro.”
“Ele é multimilionário, mas vai trabalhar todos os dias. Acho um disparate, não é inspirador. É estupidez. A Cristina Ferreira e Cristiano Ronaldo são muito importantes para nós, e espero que não sejam acometidos pela sensatez.”
E, para acabar com uma nota positiva, como vê Joana Marques o futuro da VISÃO? “Acho que é muito complicado. Ontem, às 2 da manhã, estive a fazer uma recolha e a VISÃO, se quer ter futuro, tem de começar a ser amiga de si própria. Se estiveram constantemente a lembrar nas capas que não há dinheiro, o leitor chega ao quiosque e vai poupar logo ali. Escrevam sobre as praias desertas – estragam as praias mas não o vosso futuro.”