É oficial: a Dinamarca é o país mais feliz do mundo. ?E a sua capital uma das mais gastronómicas. Os paradigmas mudaram. A felicidade já não se mede pela quantidade?de horas de sol e os escandinavos deixaram de ser vistos como sensaborões. Mas o que faz, afinal, os dinamarqueses sorrir? A comida é uma boa explicação
Jægersborggade é um nome difícil para um português pronunciar, em inglês, de forma entendível para um taxista dinamarquês. Salvou–nos o dedo apontado no mapa. Apanhámos um táxi por ser a melhor maneira de chegar a horas à única hipótese de jantar no Relae. E o Relae ficava nessa rua de nome impronunciável.
Jægersborggade, a rua, situa-se em Norrebro, um bairro, a noroeste de Copenhaga, antes apenas povoado por traficantes de drogas e prostitutas. Norrebro transformou-se e, em poucos anos, passou de clandestino a destino. Hoje é, provavelmente, uma das zonas mais concorridas da capital da Dinamarca.
O Relae, número 53 na lista dos 100 Melhores Restaurantes do Mundo, de acordo com a revista britânica Restaurant, fica em Jægersborggade. O Manfred’s também. ?A Coffee Colective, a Meyers Bageri… ?E, mesmo à saída da rua, virando à esquerda, o mais recente bar de Mikkeller. Não é preciso andar muitos metros para perceber a quintessência de Copenhaga, da Dinamarca – e um pouco de toda a Escandinávia. Ser orgânico, ser ecológico, ser local.
Para se ser local há que circular de bicicleta. Existem 400 quilómetros de ciclovias, os transportes públicos estão preparados para as levar e 40% da população desloca-se assim para o trabalho. Os autocarros são elétricos, 64% dos hotéis afirmam-se eco-friendly, três quartos da comida servida em instituições públicas é orgânica, toma-se banho nos portos, de tão limpos, muitas lojas vendem roupas feitas de tecidos orgânicos e os dinamarqueses são obcecados pela reciclagem…
Em 2014, Copenhaga tornou-se a Capital Verde da Europa, um prémio que reconhece o esforço consistente da cidade em manter elevados os standards ambientais. Criar uma sociedade verde e sustentável é um dos principais objetivos da Dinamarca. E a gastronomia segue pelo mesmo caminho.
D.N. – Depois de Noma
Quando René Redzepi e Claus Meyer abriram o Noma, em 2003, num antigo armazém de carcaças de baleia do século XVIII, junto a um dos muitos canais de Copenhaga e vizinho de Christiania, o bairro hippie, não suspeitavam que se iriam tornar o melhor restaurante do mundo por quatro vezes (2010, 2011, 2012 e 2014). Nunca pensaram ter milhares de pedidos de reserva mensais. E nunca desconfiaram que se tornariam os “pais” de uma geração de cozinheiros, mentores de uma nova tendência gastronómica que se alastrou aos quatro cantos do mundo.
Noma é a combinação de duas palavras dinamarquesas: Nordisk, que significa “nórdico” e Mad, “comida”. Está feita a associação: “Comida Nórdica”. Com esta assinatura, escreveu-se um manifesto: usar apenas produtos escandinavos frescos e prepará-los com criatividade. Com o fio das facas, assinou-se uma carta de intenções. Com o calor dos bicos dos fogões, lacrou-se uma convicção. Construiu-se uma identidade através da comida. E o Noma tornou-se imagem de um país e de uma região. Mais: tornou-se engrenagem da transformação.
O Noma não mudou apenas o cenário de restauração da Dinamarca, mudou mentalidades, fez crescer pequenos negócios – do pescador ao apanhador de ostras, do agricultor ao produtor de queijo -, descobriu uns produtos, valorizou outros. Levantou a autoestima nacional. E onde antes existia um “deserto” gastronómico, “depois de Noma” encontram-se 15 restaurantes com estrelas Michelin e chefes de cozinha reconhecidos na mais prestigiada competição gastronómica do mundo, os Bocuse d’Or.
Com uma população de cerca de 5 milhões de pessoas (mais de um milhão concentrada na capital), a Dinamarca possui uma área de 43 mil quilómetros quadrados (cerca de metade de Portugal). É um país pequeno mas não é de todo um pequeno país. De repente parece ser o lugar onde tudo está a acontecer.
As estrelas que brilham
Christian Puglisi é o chefe meio siciliano meio dinamarquês por trás do Relae. Foi ele que nos recebeu, com poucos sorrisos, à entrada do restaurante. Não nos atrasámos. A luz do dia ainda entrava pelas janelas. Eram seis da tarde em ponto. Sentámo-nos ao balcão e passámos o jantar a apreciar aquela que nos pareceu a cozinha mais tranquila do universo.
Christian estagiou no elBulli, de Ferran Adrià, e foi subchefe na cozinha de René ?Redzepi durante mais de dois anos. Até decidir que queria algo seu. Abriu o Relae com um menu mais criativo e, no outro lado da rua, o Manfred’s, um espaço mais “rústico, simples, com um menu muito rotativo ?e uma aposta nos vinhos orgânicos”. ?As palavras são do próprio.
Em meados de outubro abre o terceiro restaurante, a 800 metros dos primeiros. Chamar-se-á Beast e, em vez da vertente mais orgânica e vegetariana que apresenta no Relae, vai concentrar-se na carne e pizza no forno a lenha. E está a preparar tudo para criar a sua própria mozzarella. “Não sou dogmático”, responde-nos a respeito da denominada “cozinha nórdica”. “Se quero azeite, trago-o da Sicília. O único dogma, para mim, é a qualidade.”
Matt Orlando é outro dos “filhos” do Noma, mas também “filho” do Fat Duck, em Londres, Le Bernardin e Per Se, em Nova Iorque. É o chefe americano que se apaixonou pela Dinamarca (e por uma dinamarquesa) e quis apostar em Copenhaga para abrir o seu primeiro espaço, o Amass. Fê-lo de forma quase estrondosa. Numa área quase nos subúrbios da capital, junto à água, aproveitou um armazém, decorou as paredes com graffiti e construiu um jardim orgânico de onde extrai todos os legumes e ervas para o menu e onde serve refeições no verão. É um homem feliz e isso sente-se no restaurante. Cheira a felicidade, ouve-se a felicidade, prova-se espontaneidade.
O Geranium é, provavelmente, o oposto disto tudo. Falamos de conceito, mas também de localização. No extremo norte da cidade, em Osterbro, no oitavo andar de um incaracterístico edifício de escritórios, com vista para o relvado do Faelledparken, é um lugar de luz e tranquilidade.
É um dos dois únicos restaurantes com duas estrelas Michelin de Copenhaga (sendo Noma o outro). Menos extravagante, mais apostado no sabor. O chefe por trás das criações orgânicas e elegantes é Rasmus Kofoed, vencedor de três estatuetas na competição internacional Bocuse d’Or: ouro, prata e bronze. Exibe-as num “pedestal”, na cozinha aberta sobre a sala.
A revolução alimentar na Dinamarca não se limitou aos sólidos. A cerveja, bebida nacional, deixou de se confinar à aliança Carlsberg/Tuborg e pequenas fábricas de cerveja artesanal foram vingando e marcando o seu território. Há dez anos existiam dez. Agora são 180.
Mikkeller é o nome de destaque. Pela originalidade, mas também loucura, pela exploração dos limites, pelo desafio que se impõe de colocar as cervejas nos menus dos restaurantes de alta cozinha, fazendo maridagens com a comida, pela utilização de matérias–primas inusitadas, pelas 90 variedades que cria, em média, todos os anos, e pelos seus dois bares onde as põe à prova. O mais recente fica em Norrebro e vale a pena “perder” uma tarde (ou uma noite) a experimentar as “variações”.
The Coffee Collective também tem uma marca forte. Com três lojas, a primeira das quais em Norrebro, ergue a bandeira do comércio justo bem alto, negoceia diretamente com o produtor do café, faz parcerias com pequenos agricultores. É uma empresa de torrefação de café, mas também consultora, formadora…
No Mercado de Torvehallerne, no centro de Copenhaga, fica outra das cafetarias The Coffee Colective, mas há mais para além disso. É o lugar para, em poucos metros, conhecer o fenómeno das padarias com pão… orgânico, dos talhos com carne… orgânica, dos queijos… orgânicos, dos legumes… orgânicos, e um dos sítios certos para provar o flodebolle, a “bomboca que é doce tradicional dinamarquês, produzida como em poucos lugares pela Summerbird.
O sucesso das padarias e pastelarias dinamarquesas tem sido de tal ordem que começam a saltar as fronteiras e a abrir em Nova Iorque, Londres e Frankfurt. O mundo procura alternativas ao trigo branco, a Dinamarca já as inventou. Nas vitrinas de qualquer padaria de rua são os pães negros que se destacam, com uma gama de farinhas mais saudáveis, como centeio e espelta. Meyers Bakery é um dos nomes nesse negócio. Por trás desta cadeia de padarias está Claus Meyer, cofundador do Noma e desta revolução gastronómica nórdica.
Foi você que pediu ?uma “smørrebrød”?
É em cima do pão de centeio tradicional que se servem as smørrebrød, as sanduíches abertas, criadas no século XVI como forma de substituir os pratos, e que foram, durante décadas, o almoço nacional. Perderam-se os hábitos, voltaram a encontrá-los. Um dos grandes responsáveis por esse reencontro foi um chefe de cozinha em “licença de paternidade”.
Adam Aamann dedicou-se aos almoços para poder ser um pai presente e, assim, tornou-se pioneiro na nova vaga da smørrebrød em Copenhaga. Responsável por modernizar a tradição, trazer qualidade e frescura para cima dela. Tanto o seu restaurante como o take-away ficam na Oster Farimagsgade, junto a um dos bonitos lagos da cidade e paredes-meias com um bairro pitoresco, uma pequena “aldeia” dentro desta pequena grande capital.
Para smørrebrød à moda antiga e de qualidade irrepreensível, há que procurar o centro e encontrar o Schønnemanns. Em frente fica a Perch. Aberta desde 1835, é uma minúscula loja de chá conhecida por servir a realeza e por ter uma mistura da rainha, disponível para quem quiser levar para casa.
Depois, é ir. Deixar-se levar pela animação da Kronprinsensgade e das ruas limítrofes, deixar o mapa para outro dia, entrar num parque e ler. King’s Gardens é um dos mais próximos do centro e um dos mais bonitos, embora o mais surpreendente seja o Assistens Cemetery, em Norrebro. É um cemitério, mas é mistério da vida que se respira…