Na catedral de Cusco, capital sagrada dos incas a 3400 metros de altitude, há um quadro do séc. XVIII que desafia um segundo olhar. A primeira sensação é de déjà vu. Mas apreciada mais de perto, A Última Ceia, do pintor cusquenho Marcos Zapata, é, no mínimo, pouco dada à santificação.
O artista inspirou-se em Leonardo Da Vinci, mas o que ele queria era retratar a dominação espanhola. Por isso, Judas aparece pincelado com o rosto de Francisco Pizarro, analfabeto e criador de porcos, convertido pela Espanha imperial em colonizador dos Andes. É ele que, intimidante, olha para o espectador, enquanto esconde, na mão direita, uma sacola que sugere a sua avidez pelo vil metal. “Não se sabe como foi possível, à época, passar a mensagem de uma forma tão subversiva. Mas o verdadeiro ato de afirmação indígena está na mesa, olhem bem…”, aponta o guia Wily Gamarra.
A ceia inca representada na tela tem pão de trigo, milho, frutas tropicais e pimentos. No centro da mesa, há um cuy assado, o porquinho-da-índia que é prato forte da culinária peruana. “É uma pintura de resistência”, resume Wily, ele próprio um aficionado do cuy, almoço típico das casas humildes de Cusco em datas festivas ou domingos de farto repasto para matar saudades de familiares distantes. “Com os espanhóis nem sempre foi fácil mantermos as tradições, mas os antigos alimentavam-se bem. Graças a Gastón Acurio, que viajou por todo o país para dar a conhecer a comida dos nossos avós, tudo mudou”, garante o guia.
Gastón Acurio é o Rei Midas da culinária peruana. Chef de cozinha, dono de famosos restaurantes no Peru e no estrangeiro, foi guindado aos céus de muitas bocas e ao estatuto de vedeta televisiva. É ele o principal promotor da cultura gastronómica peruana, o homem da “revolução”. Os seus parceiros de ofício consideram-no o maior embaixador da cozinha do país e ainda está para nascer quem lhe roube o título.
Da resistência à revolução
Durante séculos, a sina da gastronomia peruana foi resistir. Mas, para percebermos como tudo mudou, nem precisamos sair de Cusco.
Procurada pelo seu caráter e locais históricos, a cidade viu nascer outro tipo de “monumentos “: escolas de cozinha de prestígio e restaurantes distintos. “Os roteiros gastronómicos estão na moda. Os franceses, italianos e americanos são os que mais nos procuram”, atesta Marco Arrelano, da agência Llama Trips. Há tours, em Lima e noutras cidades, que começam de manhã e acabam à noite, petiscando e bebericando.
No Pachapapa, situado numa das vielas da zona histórica de Cusco, as mesas e bancos de madeira rústica são insuficientes para os candidatos a saborear as iguarias tradicionais peruanas, “com sabor a terra fresca e mãos camponesas”, conforme assinalam os críticos gastronómicos. O ambiente é cosmopolita.
Os chicharrones (algo similar aos rojões) e o aji de gallina (um frango cremoso picante) são consensuais entre indígenas e forasteiros.
Mas é o lendário cuy, assado e tostado em forno a lenha que, tendo sobrevivido aos condimentos e cozinhados da História, pode hoje gabar-se de derrubar almas e apetites mais sugestionáveis, caindo no goto dos turistas.
A febre da gastronomia mudou a narrativa histórica peruana, literalmente.
A antiga casa do inquisidor, na praça central de Cusco, deu lugar ao restaurante Limo, um dos roteiros obrigatórios para quem ousa enfrentar as altitudes da região e deliciar-se com ementas peruana e japonesa, de fusão. Nas paredes, há cartazes emoldurados com frases de poetas ilustres e mensagens de orgulho pátrio. A batata andina, tostada, salteada e servida como aperitivo, dá início a uma refeição que é um mosaico quase inesgotável da variedade, cores e sabores deste território.
No Peru sempre se cultivou muito perto do céu e procurou-se sustento nas profundezas do mar. Mas até há poucas décadas, a culinária indígena era assunto de pobres e remediados.
Apesar de ostentar uma diversidade alimentar de fazer inveja a qualquer outro país do planeta, com 3500 espécies de batatas e uma soberba miscelânea de peixes de correntes frias e quentes, houve um tempo em que as elites políticas e sociais desdenhavam da comida nacional e dos sabores “caseiros”.
As ementas do Palácio do Governo ou da aristocracia rançosa eram, até meados do século passado, de raízes francesas e escritas nessa língua, de acordo com o filósofo e dirigente da Sociedade Peruana de Gastronomia (APEGA) Mariano Valderrama. “Era evidente o menosprezo por aquilo que era saborosamente autóctone e a debilidade patológica em relação a tudo o que vinha de fora. E se era da Europa, melhor”, escreveu, irónico, num ensaio sobre o “boom” da cozinha peruana.
A moda contagiava cozinheiros, hoteleiros e empresários da restauração. As classes sociais emergentes exibiam apelidos suíços ou franceses. O ceviche, prato de honra da gastronomia andina, feito de peixe cru marinado em sumo de citrinos, nem sequer tinha lugar nos grandes restaurantes. No início deste século, os livros sobre a gastronomia indígena eram atos exóticos de uns poucos editores e livreiros. Havia apenas duas escolas de cozinha e a comida peruana era desconhecida no exterior, sintetizou Valderrama.
Gastronomia, carreira promissora
A revolução entrou então pela porta dos fundos. Começou no dia em que as migrações em massa das províncias para o litoral arrastaram também mulheres contratadas pelas famílias abastadas que, a partir da cozinha, levaram ao lume – e à mesa – os costumes, saberes e sabores ancestrais.
Em poucos anos, a arte de cozinhar e promover os ingredientes nacionais transformou a gastronomia em assunto académico, tema de moda e sinónimo de carreira promissora.
Os pais já não querem os filhos doutores ou engenheiros, mas sim de avental. Os jornais criaram secções especiais sobre gastronomia e restaurantes. Os programas de rádio e televisão, com cozinheiros, batem recordes de audiência. Os “chefs” tornaram-se mais influentes do que políticos e atores. Do vão de escada às universidades, há cursos de cozinha para curiosos apenas com vontade de surpreender os amigos e licenciaturas que explicam o mundo, da vaca ao bife e da batata ao lume. Numa breve visita à Casa da Gastronomia Peruana, inaugurada em 2011, percebe-se até onde chegou a fama dos produtos nacionais, a começar pela quinoa, o nutritivo grão que alimenta astronautas e pelo qual os parisienses pagam fortunas.
O requinte tomou conta da comida peruana, hoje matéria de pós-graduações e servida em comboios de luxo e aviões. Nos voos internos, os passageiros têm direito a revistas com dossiês especiais sobre os “super chefs” e os restaurantes mais “in”, entre os quais o Osso, dirigido por Renzo Garibaldi, “o carniceiro mais mediático do Peru”, ao qual já se renderam sacerdotes, em suculentas jornadas de pecado. No restaurante serve-se a melhor carne nacional, sem talheres, para comer com as mãos, e a espera por uma mesa pode demorar dois meses.
Em Lima, a última edição da Mistura, feira internacional de gastronomia, recebeu 420 mil visitantes, entre os quais 320 jornalistas estrangeiros. Fora das suas fronteiras, a comida peruana é capa de revistas prestigiadas, tem devotos como Ferran Adriá e especialistas que já lhe atribuem o título de “melhor gastronomia da América Latina”. Pelo menos. Na capital peruana nascem “boulevards ” gastronómicos para todas as bolsas e gostos. Na rua, os vendedores ambulantes de anticuchos (espetadas de coração de vaca) passaram da vulgaridade a curiosidade turística.
Há 12 mil cevicherias na capital e até os mercados tradicionais de frescos têm estrelas de televisão.
É o caso de Diego Balarezo, do multicolor Mercado n.º 1 de Surquillo, famoso pelo seu ceviche “gourmet”, a 30 soles (cerca de 9 euros), encantado com esta vaga da culinária peruana que abriu o apetite mundial: “A nossa cozinha é das mais ricas do planeta e tem, inclusive, ajudado a transformar o país socialmente”, explica à VISÃO. “Mostramos ao mundo a nossa riqueza gastronómica e ajudamos a melhorar a vida dos pescadores artesanais e produtores rurais. É um bom caminho”, refere.
E Vargas Llosa rendeu-se
De visita a Lima, Carlo Petrini, autoridade maior, já o dissera. “O que se está a cozinhar aqui é a revolução da gastronomia mundial”, referiu o presidente do movimento global de alimentação sustentável Slow Food em entrevista à revista Agro Notícias. “O povo peruano está a desenvolver um novo paradigma para fazer frente ao caduco modelo que levou a crise ao mundo inteiro”, acrescentou.
No Huaca Pucclana, restaurante situado junto às ruínas arqueológicas com o mesmo nome, no centro de Lima, a chefe Marilu Madueño recorda que tudo começou a mudar “numa altura em que a crise cortou dinheiro às importações e os peruanos olharam, finalmente, para o que tinham na dispensa”. Há 14 anos, quando ela inaugurou o seu espaço, “ninguém se lembraria de abrir um restaurante para servir o que se comia em casa”, mas a necessidade aguçou o engenho. “Começamos a dar-nos conta da nossa riqueza de ingredientes e produtos. O intercâmbio cultural de séculos fez o resto”, sorri, descansando por breves momentos das ordens dadas na cozinha e das solicitações dos clientes.
Pelo Huaca Pucclana já passaram celebridades como Jimmy Carter ou Ewan McGregor, mas Marilu prefere destacar o contributo do restaurante para a dignificação da cozinha peruana. “A gastronomia impulsionou uma mudança social, permitiu pagar mais aos produtores e melhorar a vida das pessoas das províncias. As pessoas viram a sua autoestima melhorar, tornaram–se mais otimistas. Se temos que ser bons em algo então que seja na gastronomia”, sorri.
A popularidade da cozinha peruana não se limitou a conquistar paladares, dentro e fora do país: derrubou barreiras sociais, temperou a luta de classes, surpreendeu os mais céticos, ainda que laureados. “Se alguém me dissesse há uns anos que, no estrangeiro, se organizaria uma viagem turístico-gastronómica pelo Peru, simplesmente não acreditaria “, escreveu Mario Vargas Llosa no diário El Comercio, há meia dúzia de anos.
O Prémio Nobel suspeitava então que alguns dos pratos e receitas típicas do Peru do lomo saltado ao suspiro a la limeña estavam a atrair ao seu país tantos turistas como aqueles que viajavam em busca dos palácios coloniais ou das ruínas de Machu Picchu. Hoje, já não é uma mera suspeita: 42% das pessoas que visitam o Peru fazem-no de água na boca.
Mario Vargas Llosa já deve ter observado a evolução do fenómeno num dos seus restaurantes preferidos de Lima, o Perroquet, integrado no hotel Country Club, onde o escritor é um fiel apreciador da corvina, com pouco sal, e legumes ao vapor. O maitre Benito Saco garante que os menus levaram uma volta considerável, pois “a comida típica peruana impôs-se em todas as cartas de todos os restaurantes.
É o que os turistas mais pedem”, reconhece. Para Benito, o país só precisa de tornar o serviço “mais afetuoso” e preservar as “mãos sábias das cozinhas, evitando que tenham de emigrar para se afirmarem”.
O histórico hotel não se limita a oferecer uma das melhores cartas de restaurantes do País. É também procurado por ter ao seu serviço um dos mais requisitados barmen do Peru. Roberto Meléndez, homem de feições andinas, prepara um pisco sour de excelência, a bebida nacional peruana, à base de aguardente vínica, clara de ovo, sumo de limão e outras subtilezas. No dia em que a VISÃO o conheceu, ele dirigia uma prova de pisco, de marca Qollque, da produtora e empresária Cecilia Ledesma.
O pai de Roberto serviu o cocktail a bebedores tão graduados como John Wayne, Hemingway ou Greta Garbo. Agora, o filho e Cecilia querem chegar aos apreciadores jovens, “para que consumam o produto nacional e não outros destilados”.
Sem olhar a gerações, o culto da gastronomia impôs-se e inspira até alguma da melhor literatura negra peruana. Em 2007, Juan Manuel Robles escreveu Huancaína Freak, um conto futurista e apocalíptico de Lima, “cidade doente, transtornada pela comida, adita aos orgasmos do paladar”, onde “todos cozinham, todos dizem ter criado um prato, todos bebem e todos são críticos: comer é um carnaval permanente e uma explosão demencial “. No final, o protagonista, que nunca estrelou um ovo, assassina a companheira com uma receita gourmet, fazendo as pazes com o pai, chef e dono de uma cadeia de restaurantes.
“Acabas de matar a puta da tua namorada com uma papa a la huancaína e aloendro. Tens talento.” Robles venceria o primeiro concurso de conto gastronómico da editora Matalamanga. O Peru, esse, continua a confecionar histórias de comer e chorar por mais.
Peruanos que vêm aí
Portugal vai ter uma série de restaurantes do Peru. Saiba onde
- Pela mão do chef Kiko Martins, abriu no mês passado, em Lisboa, o segundo restaurante peruano da capital. Chama-se Cevicheria, fica no Príncipe Real, e propõe uma cozinha de fusão peruano-portuguesa. Junta-se assim ao Qosqo, na Rua dos Bacalhoeiros, o pioneiro da invasão da gastronomia peruana que, entretanto, não vai ficar por aqui.
- Juan Luís Ruiz, Conselheiro Económico da Embaixada do Peru em Portugal, confirmou à VISÃO avanços nas negociações para a abertura, entre março e abril, de três novos restaurantes, em regime de franchising. São eles o Segundo Muelle e o Punta Sal, no Porto, e a Sandwicheria La Lucha, no Algarve.
- Para o chefe Hélio Loureiro, que tem em curso um projeto para mostrar e divulgar a riqueza gastronómica da América Latina, a cozinha peruana “enriqueceu com os séculos, mas não se perdeu no tempo nem com o tempo”. Afastada da rota da gastronomia mundial durante anos, a cozinha peruana deve ao chef Gastón Acurio a abertura de portas e de apetites que ignoraram as caricaturas e preconceitos do turismo massificado e fizeram justiça “à riqueza da sua cultura milenar”.