Foram sete horas e meia de viagem, até chegar à pequena vila, encravada no meio da cordilheira do Atlas. A jornada terminou, era já noite negra. Pelo caminho, fintámos curvas e contracurvas, rematadas por penhascos inesperados.
De Fez a Imilchil, a paisagem foi surpreendendo-nos à medida que se reinventava, de norte para sul. De dourada passou a verdejante, mais tarde tornou-se seca e rochosa e a própria terra chegou a ficar vermelha, como não tínhamos visto, até então.
Fomos observando as casas que iam surgindo à beira da estrada, bem como as crianças-pastores que conduziam rebanhos de ovelhas e cabras e que olhavam para nós com alguma desconfiança inocente. Cruzamo-nos também com muitos habitantes locais, muitos deles agrupados em família, a quem acenámos simpaticamente. O cumprimento foi sempre retribuído. Aos nossos sorrisos, de dentro do carro, juntavam-se os seus sorrisos do lado de lá.
Ainda assim, foi uma corrida em contrarrelógio – só chegamos a Imilchil ao lusco-fusco e por lá ficámos dois dias e duas noites. De entre os 1400 habitantes que a povoam, marcou-nos especialmente um deles. O Ismael começou por ajudar-nos a encontrar um sítio para dormir, mas acabou por se tornar no nosso melhor amigo marroquino.
Através dele, acabámos também por conhecer o Asis, dono do albergue onde ficámos hospedados, e a Mouna, a rapariga que servia às mesas, no café que havia no piso térreo do edifício.
Sobre a primeira noite, pouco há para contar. Apesar da hora tardia a que chegámos, ainda foi possível comer regaladamente uma omeleta Berbere (ou Amazigh, segundo o dialeto local). Depois de muitas negociações, conseguimos chegar a um acordo com o Ismael, para que ele nos guiasse pelos meandros do Atlas. O trekking, que tanto almejávamos desde Portugal, era agora uma realidade.
No dia seguinte, caminhámos mais de 20 quilómetros de distância e subimos até aos 2900 metros de altitude. Alcançámos o cume da montanha, já passava das seis da tarde, depois de uma subida íngreme, difícil, feita a custo, por causa da falta de fôlego, motivada pela altitude em que nos encontrávamos.
Do topo do acidente geográfico avistavam-se os dois lagos ali à volta, Tislit e Islit, mas as rajadas de vento eram intensas e a chuva deu o ar da sua graça, mais uma vez.
Já na planície, tínhamos levado com uns chuviscos e trovões, o que nos obrigou a procurar abrigo num dos inúmeros currais, com paredes de calhaus e telhado de colmo, existentes nas imediações.
A descida, como é certo e sabido, foi muito mais fácil, pois todos os santos ajudam. Ainda assim, houve algumas quedas e tropeções, de que resultaram espinhos nas mãos e arranhões nas pernas.
Antes de chegarmos a Imilchil ainda houve tempo para saciar a sede que nos matava, numa pequena nascente de água fresca e potável, situada na base da cordilheira. Nunca a água nos tinha sabido tão bem. Chegados de novo à estrada que nos levaria de volta à povoação, aguardámos uns minutos até que aparecesse o primeiro carro, na esperança de conseguir uma boleia. Coincidência ou não, regressámos a Imilchil com um grande amigo do pai de Ismael. Até lá chegar, serpenteámos por um dos muitos vales que intervalam as montanhas do Atlas. Este por onde passámos, em particular, acolhia pomares e milheirais. Verde que se opunha às encostas estéreis e rochosas, ali à volta.
Mais tarde, e já depois do banho tomado, aceitámos o convite do Ismael e fomos até ao centro da vila, para ver de perto os festejos de um casamento típico da região (Berbere ou Amazigh).
A noiva, que não chegámos a ver, e os seus convidados tinham chegado ao princípio da noite, porque provinham de outra povoação, não muito distante.
A união do casal tinha sido oficializada há já alguns meses, mas só agora é que ia ser celebrada como manda a tradição. São três dias de festa rija, com muita música e dança, ao som de gaitas e tambores, à volta da fogueira. Batem-se palmas e no epicentro do êxtase, as mulheres abanam as ancas e os ombros, numa coreografia muito física e eufórica, em que o corpo cede ao ritmo da percussão.
Só presenciámos a primeira noite e não chegámos a ter tempo de ficar e desejar felicidades aos noivos. Segundo nos confidenciou Ismael, o auge das celebrações acontece no segundo dia.
Depois da farra voltámos ao albergue com o nosso novo amigo. Asis recebeu-nos com uma tajine de cordeiro – que nos soube pela vida – e ainda nos surpreendeu com uma bela garrafa de vinho tinto, que bebemos com prazer, enquanto se falava de religião, política e tradição, com cigarros e hits marroquinos à mistura.
No dia seguinte, pela manhã, já era tempo de partir para outra. Para trás ficou o Asis, de 28 anos, que nos acolheu de braços abertos, no seu albergue, e que em breve verá nascer o seu primeiro filho. Mouna também se despediu e voltou à sua vida. Dela recordamos a extroversão, o atrevimento e o sorriso matreiro, contrastante com o semblante carregado e inibido da maior parte das mulheres e raparigas com quem nos tínhamos cruzado ate então.
Zarpámos de Imilchil, mas não viemos sozinhos, porque o Ismael também “embarcou” connosco. De lá partimos para as Gargantas do Todgha e de seguida, para os arredores de Merzoga, para pisar as areias escaldantes do Sahara e conhecer uma outra face de Marrocos.
Imilchil vale a pena, não só pelo Atlas, mas também porque é um bom pretexto para fazer uma pausa na viagem e conviver com a população. A mesma que nos acolheu de braços abertos. É uma referência mais do que justa e da qual tínhamos de deixar testemunho. Não deixem de caminhar bastante pelas imediações, não esquecendo os tais lagos de água fresca: o mais pequeno, mas mais próximo da aldeia (Tislit) e o mais distante, Islit.
Toca a andar!