Porque é que as grandes travessias épicas dos Estados Unidos são em direcção ao Oeste? De tal maneira é assim que na psique nacional a palavra Oeste é mais do que um ponto cardeal, é uma meta. Num país que foi feito para ser atravessado com aquelas planícies imensas e a invenção do automóvel a condicionar a sua geografia humana também há-de existir um itinerário que empurre de Norte para Sul, e um que te ponha a subir de Sul para Norte, por exemplo o dos ex-escravos das plantações de algodão meridionais para as fábricas de Detroit e Chicago, já para não falar de um qualquer percurso que faça inversão de marcha e percorra o país de Oeste para Leste. Mas não são considerados. Ou mais exatamente, não são reconhecidos como mitos fundadores.
Será uma vez mais a História, aquela escrita pelos vencedores, ou neste caso pelos que chegaram primeiro, a explicar este sentido de marcha. Afinal, foram os europeus que começaram a explorar a Terra das Oportunidades e não consigo pensar em melhor associação de palavras do que “explorar” e “oportunidade” quando se trata do relacionamento que o homem europeu teve com o continente americano logo, vinham de Leste e avançaram para Oeste. Primeiro Boston, mais tarde Chicago, depois Denver e por fim San Francisco.
Ouro e terra, as duas formas de património mais sólidas e seguras que o ser humano conseguiu inventar nos milénios, conjugaram-se para atrair a Oeste milhões de nómadas ávidos e persistentes.
A viagem não era uma construção do imaginário, não era um ritual de crescimento e superação, não era um prazer do olhar. Era um obstáculo a superar. Antes da compleição da linha ferroviária que uniria a costa leste à costa do Pacífico, no final de 1867, os cerca de quatro mil quilómetros de uma travessia continental demoravam seis meses a ser percorridos, mas tratava-se de um desafio tão árduo e intimidante, que quase todos os garimpeiros e colonos que se dirigiam de Nova Iorque a San Francisco preferiam embarcar-se num clipper, navegar vinte mil quilómetros, dobrar o cabo Horn e chegar à costa Oeste oito meses depois. Como alternativa a esses dois itinerários, por terra ou por mar, o comboio iria demorar uma semana para ligar o Atlântico ao Pacífico. Eu, de autocarro, demorei três dias.
Não sei se na altura pensei nisto tudo que estou a escrever agora, admito que pensei. Durante as noites acordado, a olhar para as estrelas pelo vidro gelado da janela com o corpo encarquilhado no assento desconfortável do Greyhound 6579 New York Los Angeles, pensa-se em tudo. Vi um dos mais espantosos crepúsculos da minha vida, daqueles que te surpreende no início pela frente mas depois recomeça pela retaguarda, atravessei a minha primeira tempestade de neve e o meu primeiro rio gelado, aprendi a pronunciar correctamente Des Moines e Iowa, não vi a aurora boreal, mas já tinha visto uma anos antes, num outro Greyhound, numa travessia em sentido idêntico mas mais a norte, pelo Canadá. Passei pela Torre Eiffel em Las Vegas, parafraseei o percurso da Route 66 de vez em quando, e fui insultado por uma passageira quando tirei uma fotografia ao habitáculo, como se o interior do Greyhound fosse um gueto e eu não fizesse parte do gang. Atravessei a América, paguei 250 dólares, guardei o bilhete.
Não soube o nome da miúda que me mostrou o dedo do meio em riste e gritou FUCK OFF quando tirei a fotografia, mas a outra miúda, a que tentou acalmar as coisas, chamava-se Diana. Não se conheciam entre elas nem sequer faziam parte do mesmo subgrupo, porque em cada viagem de Greyhound formam-se subgrupos instantâneos como membros de tribos que se autoidentificam pela cor das lanças ou pelo osso de animal que apanha os cabelos soltos e nas paragens de meia hora as pessoas parecem ter imãs de compatibilidade, os chicanos vão tomar café juntos no seu idioma acossado, os hobos dividem logo um cigarro com ar comprometido e militante como se rompessem uma barreira de ilegalidade em tudo o que fazem, os blacks dirigem-se ao urinol com o ar seguro e bonacheirão de quem se diverte sempre a comparar o tamanho das pilas, os reformados abrem os seus tupperwear de comida fria e os termos de chicória solúvel quente nas mesas do parque de estacionamento e almoçam com ar triste e desinteressado, os fatos de treino coloridos e aberrantes a flutuar ao vento da pradaria como espantalhos que ficaram de fora do sonho americano.
Obrigado foi a palavra que usei para meter conversa com a Diana e agradecer-lhe a sua intervenção, convidei-a para tomarmos um café ou qualquer outra coisa, também ela viajava sozinha, não apenas no sentido de um acompanhamento mas tal como eu faltava-lhe alguém mais com quem constituir um subgrupo, eu viajante europeu curioso do mito da travessia coast-to-coast, ela americana da Costa Leste que não arranjara um bilhete de avião a um preço conveniente para visitar amigos na Califórnia e, “já que nunca fiz esta viagem aproveito para conhecer o meu país, afinal é um clássico da formação da nossa pátria atravessarmos do Atlântico para o Pacífico”, exclamou a rir.
“Aquela ali”, apontei para a passageira que me agredira verbalmente, e que estava a partilhar um cigarro com outros três tipos, “deve pensar que sou um agente do FBI”. Diana respondeu algo assim: “não ligues, representamos tudo o que desprezam e os complexa, vida burguesa, senso comum, educação, horizontes de vida”. Poderíamos acrescentar, eu ou ela: “e curiosidade pela viagem.” Regressámos ao autocarro para mais quatro horas de estrada. Para dois dos passageiros, mais quatro horas de prazer do olhar e isto não sei se pensei na altura mas admito que pensei mais quatro horas de construção de um imaginário, de um ritual de crescimento e superação; para o resto dos passageiros, mais quatro horas de obstáculos a superar nessa viagem cansada em busca de qualquer coisa que certamente existe mais a Oeste de qualquer lugar.