Nos anos fui regressando a La Libertad e à sua favela e à amizade com o Carlos Alas.
É um padeiro simples, ignorante e indefeso que, como as personagens neorrealistas, vai sendo abanado pelo destino como um espantalho ao vento. O Carlos vive na favela de LaLibertad, uma vila piscatória que também já foi estância balnear, na Costa do Bálsamo, em El Salvador. Um homem pobre de um dos países mais pobres da América Latina.
Eu andava a viajar há cerca de quatro meses. Na minha visão idílica de La Libertad, esta vila em anfiteatro sobre o Pacífico seria um lugar bom para retemperar forças durante um par de semanas.
Já não era. A guerra civil dos anos oitenta acabara com as mansões elegantes, com as ruas sombreadas, com os vendedores de mangas fatiadas a calcorrear a praia e os mariachis nas varandas dos bares. Pelo contrário, a guerra civil deixara a violência social e a criminalidade fácil, depois ainda a miséria de horizontes e por fim a praga do crack, a cocaína dos miseráveis. Cheguei com quatro décadas de atraso a La Libertad. Fiquei na mesma um par de semanas.
O Carlos costumava passar de madrugada, que é a hora de atividade de todos os padeiros no mundo e, no caso concreto dos trópicos, também a hora de atividade de toda a gente, antes do calor se tornar insuportável. Descia a rua da minha pensão com a sua bicicleta, anunciava-se com uma corneta artesanal, expunha o pão no cesto de verga aparafusado no guiador. Eu comprava-lhe algumas carcaças mais por nostalgia do pequeno-almoço português do que por apetite ou oportunidade. Ao fim de três dias éramos amigos. Ao fim de cinco conheci a sua família, mulher e cinco filhos; e a sua casa, uma divisão de zinco que em Portugal seria útil apenas para guardar ferramentas de uma obra.
O forno estava a céu aberto, a “casa” inclinava-se sobre as margens de um ribeiro que com a época das chuvas costumava transbordar, a temperatura debaixo e dentro das chapas de zinco que eram o telhado e as paredes rondaria a do Inferno, um dos filhos encontrava-se doente, outros dois olhavam-me tementes e pasmados, os restantes estavam na escola. No centro da divisão erguia-se uma máquina de amassar farinha, a mais importante peça do agregado familiar.
O velho provérbio chinês
“Não dês um peixe a um homem, ensina-o a pescar”, é apontado como um bom exemplo da antiga e sensata sabedoria oriental. Talvez o seja, lá; mas aqui, no Ocidente é certamente uma sabedoria simplista e inadequada, pelo menos no que diz respeito às nossas tentativas nem sempre desinteressadas de ajudar os países do chamado Terceiro Mundo. Viajando por esse terceiro mundo, apercebo-me que a ajuda é geralmente mal direcionada, desnecessária, desinformada e nos piores dos casos, corrompida.
Com as viagens, tornei-me cada vez mais cético sobre os méritos dessa ajuda, compreendendo que cinquenta anos de donativos, cooperação, voluntariado e intervenção provocaram resultados bem pouco satisfatórios e muitas vezes consequências paralelas que apenas adiaram a resolução de problemas crónicos do subdesenvolvimento. Um caso gritante é o do Laos, em que um regime semiditatorial vai mantendo o país na tabela planetária dos mais subdesenvolvidos para que os donativos internacionais, que são a principal fonte de rendimentos da nação, continuem a fluir. A atualização do provérbio oriental devia soar a algo como “Não dês um peixe a um homem, vê como ele pesca na sua parte do mundo, e percebe o que lhe faz falta para pescar melhor “. Claro que isso pressupõe ir conhecer bem o dito homem, e o “território” onde ele pesca… coisa que os doadores internacionais nem sempre fazem. No caso concreto de cada um de nós, cada vez que quisermos contribuir para algum projeto, voluntariado, ONG, o que eu aconselho sempre é: “perceber bem a finalidade da nossa doação”.
Nos anos fui regressando a La Libertad e mantendo viva a amizade com o Carlos e, como em todas as amizades, aprendi coisas preciosas com esse padeiro crédulo e ignorante. Uma dessas coisas que aprendi foi a saber ajudar um homem que pesca. Como no exemplo da máquina de amassar.
“Uma dessas coisas que aprendi foi a saber ajudar o homem que pesca”
O Carlos consegue gerar um rendimento de cerca de 200 dólares por mês com o pão que produz e vende. Na altura, usava um terço desse rendimento, 60 dólares, para pagar o aluguer da velha máquina de amassar farinha que era o centro do agregado familiar. Só conseguia ter dois filhos a estudar de cada vez, tinha que esperar o fim da primária de um, para que um outro iniciasse a sua escolaridade. Era uma questão de disponibilidade de dinheiro.
Seria possível comprar a máquina do pão para o Carlos e libertar o valor do aluguer para outras coisas, nomeadamente a educação de todos os filhos? Fomos à capital falar com o dono da máquina, um negociante astuto que comprava estas máquinas completamente obsoletas pela Europa e as colocava nas padarias de El Salvador. Claro que pediu um preço absurdo pela máquina mas não era eu nem o Carlos que a íamos pagar era o grupo de amigos portugueses do Carlos.
Antes de regressar a La Libertad, eu tinha acionado a proverbial “vaquinha” entre os meus parentes e amigos e com um pequeno contributo de cada um chegára-mos ao valor necessário para oferecer a máquina à “padaria” do Carlos. Que ali continua, no centro de um agregado que hoje consegue manter todos os filhos a estudar.
A miséria gritante em que vive a família Alas continuará, porque é sistémica. Mas talvez os filhos cresçam com melhores ferramentas para sair dela.
Serão menos ignorantes que os pais, conhecerão melhor o território em que pescam. E talvez nós, os amigos portugueses deles, possamos continuar a ajudá-los a pescar.